………… .ARTIGO ORIGINAL. ………….

Rev. Ang. de Ciênc. da Saúde. 2021 Jan – Jun; 2 (1): 9-18

Issn (Online): 2789 - 2832 / Issn (Print): 2789 - 2824

Equipa Multidisciplinar de Profissionais de Saúde, Docentes e Investigadores Nacionais

Factores Associados à Insatisfação dos Médicos dos Hospitais de Nível Terciário em Luanda, Angola

Factors Related to the Dissatisfaction of Physicians of Tertiary-level Hospital in Luanda, Angola

Tshimbalanga Merite1, Mauer Alexandre da Ascenção Gonçalves1*, Isaura da Conceição de Almeida Lopes1, Pedro Magalhães1

 

1-    Departamento de Ciências Fisiolôgicas da Faculdade de Medicina da Universidade Agostinho Neto, Luanda, Angola. Orcid: 0000-0002-6642-010X

2-    Idem. Orcid: 0000-0001-9273-3321

3-    Idem. Orcid: 0000-0002-8994-3771

4-    Idem. Orcid: 0000-0003-2382-6422

* -  Autor correspondente. Email: mauergoncalves@gmail.com

Doi: https://doi.org/10.54283/RACSaude.2789-2832.v2n1_2021.p9-18

Recebido: 03 de Maio de 2021 / Aceite: 06 de Junho de 2021 / Publicado: 30 de Junho de 2021

 

RESUMO

Introdução: Na área de saúde, o grau de satisfação dos profissionais determina a qualidade de serviço e a satisfação dos pacientes.

Objectivo: Avaliar os factores associados à insatisfação em médicos que trabalham em unidades hospitalares de nível terciário, em Luanda, Angola.

Material e Métodos: Estudo transversal, com uma amostra de médicos das principais unidades hospitalares de nível terciário do sector público em Angola. Utilizamos um questionário adaptado de outros instrumentos validados. Usamos o teste Qui-quadrado para analisar a relação entre a insatisfação profissional e as variáveis demográficas e da vida profissional.

Resultados: De um total de 164 participantes, a maior parte (83.5%) relatou a insatisfação profissional, principalmente em relação à remuneração (92.7%), horas de trabalho (89.6%), carência de meios de adequados (80.5%) e segurança pessoal (62.8%). Verificou-se uma associação entre a insatisfação e as variáveis local de trabalho, horas de trabalho, diferenciação profissional e área de especialidade (P <0.05).

Conclusão: Os resultados indicam uma elevada taxa de insatisfação profissional entre os médicos dos hospitais de nível terciário em Angola, com particular realce para os aspectos da vida profissional e segurança pessoal, o que sugere a necessidade de atenção para as componentes social e profissional com vista à melhoria da qualidade de serviço prestado pelos médicos.

Palavras-chave: Insatisfação no trabalho, médicos, hospitais, Angola

 

ABSTRACT

Introduction: In the health area, the degree of satisfaction of professionals determines the quality of service and patient satisfaction.

Aim: To evaluate the factors associated with dissatisfaction among physicians working in tertiary-level hospitals, in Luanda, Angola.

Methods: Cross-sectional study with a sample of physicians from main publics tertiary-level hospitals in Luanda, Angola. A questionnaire adapted from other validated instruments was used. The Chi-square test was used to determine the association between job dissatisfaction and demographic variables and the professional’s characteristics.

Results: From a total of 164 participants, most (83.5%) stated dissatisfaction, mainly about remuneration (92.7%), working hours (89.8%), correct diagnoses resources (80.5%) and personal security (62.8%). There was association of dissatisfaction with professional characteristics, such as workplace, working hours, professional differentiation and speciality area (P <0.05). Conclusion: The results indicate a high rate of professional dissatisfaction among physicians of tertiary-level hospitals in Angola, suggesting the need to achieve the social and professional satisfaction for improvement of the quality of the services provided.

Keywords; Job dissatisfaction, physicians, hospitals, Angola


          

             INTRODUÇÃO

  A satisfação profissional é definida como uma sensação subjectiva do indivíduo em relação ao seu trabalho, que consiste na diferença entre a quantidade de recompensas recebidas e a quantidade que acredita que deveria receber1,2. Esta, pode exercer uma grande influência sobre o trabalhador, afectando não apenas a sua saúde física e mental, mas também atitudes, comportamento profissional, social e, ainda com repercussões, tanto para a vida pessoal e familiar do trabalhador, assim como para as organizações3,4.

  Ao contrário dos dados de estudos realizados na década de 90, os estudos mais recentes revelam existir uma correlação razoavelmente alta entre a satisfação e a qualidade de serviços de saúde prestados; contudo, esta correlação carece de mais investigações e aprofundamentos5,6

  Existe uma relação positiva da satisfação profissional com a qualidade de vida dos trabalhadores, assim como com a produtividade dos mesmos. Por essa razão tem sido encorajada a assunção da responsabilidade por parte das organizações no sentido de proporcionar aos seus empregados trabalhos desafiantes e recompensadores, não só ao nível monetário, mas também ao nível do crescimento profissional1,7

 Em vários países, a satisfação dos profissionais de saúde tem sido apontada como uma das medidas da qualidade do sistema nacional de saúde e como principal pilar para o seu desenvolvimento8. Por outro lado, os médicos insatisfeitos são menos produtivos, pouco eficientes, e têm mais problemas de saúde, maior probabilidade de ausências laborais injustificadas e de sofrerem de mais problemas psicológicos, incluindo o Sindrome de burnout9,6.

 Nas últimas décadas, têm havido um aumento crescente da proporção dos médicos insatisfeitos com o seu trabalho profissional e as consequências daí decorrentes têm merecido uma maior atenção em todo o mundo. A crescente proporção de profissionais médicos insatisfeitos com o próprio trabalho e as consequências decorrentes dessa situação vêm recebendo muita atenção nas últimas décadas, a nível mundial10.

 Por exemplo, estudos realizados na Europa e na América têm revelado maior prevalência da depressão, ideias suicidas e da Síndrome de burnout nos profissionais médicos do que na população em geral. Esses estudos têm apontado, como principal causa a insatisfação profissional decorrente da sobrecarga laboral e o excesso de trabalho 11–14 Outros estudos demonstraram que uma redução do grau de satisfação e do bem-estar dos médicos tem forte influência sobre a sua diligência, assim como no seu funcionamento cognitivo e na relação médico-paciente15,16.

 Sabe-se que a satisfação profissional é directamente proporcional à produtividade e, inversamente, ao absentismo laboral e rotatividade de uma organização17. Por isso se considera que as motivações que desencadeiam a saída do profissional médico de uma unidade de saúde, mesmo do Sistema Nacional de Saúde, estão intimamente vinculadas às condições gerais existentes para a realização de seu trabalho18. Neste sentido, tem sido indicado uma avaliação mais criteriosa da satisfação do médico com o seu trabalho em âmbito local, para identificar os factores determinantes e a sua gravidade, de modo a serem definidas melhores estratégias de reversão dos mesmos19.

  A compreensão do fenómeno de insatisfação profissional dos médicos exige um entendimento profundo das causas de base, e deve incluir também os factores a montante, tais como a decisão da escolha do curso, o processo da formação, a escolha da especialidade e o exercício da actividade clínica20,21. Em geral, considera-se a satisfação profissional como o resultado da combinação entre os factores intrínsecos e extrínsecos. Os factores intrínsecos são os que se relacionam com o próprio profissional, como a sua preferência pelo tipo de trabalho que exerce; enquanto que os extrínsecos estão relacionados com as condições de trabalho, a remuneração ou outros aspectos similares como motivação de trabalho.

 Em todo o mundo, o estudo da satisfação profissional dos médicos é importante para uma melhor gestão dos recursos humanos, em função da missão das instituições de assistência sanitária. Isso torna-se capital, sobretudo nos países Africanos onde é notável a carência de médicos em todas áreas, sendo que em alguns países essa carência é crítica. Por exemplo, em Angola existe aproximadamente um médico por cada 4000 habitantes, um número muito abaixo em relação ao preconizado pela OMS (um médico por cada 1000 habitantes), estando, ainda assim, a maioria concentrada em Luanda22–24.

 Apesar disso, são escassos os estudos sobre satisfação profissional dos médicos em África. Por outro lado, estudos prévios em diferentes países africanos identificaram baixo nível de satisfação nos profissionais médicos, tendo como principais factores as condições de trabalho, a remuneração, o corpo administrativo e a segurança no local de trabalho8,25–28. Sendo que em Angola não existem dados de estudos divulgados sobre os factores associados à insatisfação profissional dos médicos, o objectivo da presente pesquisa é de identificar os factores associados à insatisfação profissional em médicos que trabalham nas unidades hospitalares de nível terciário do sector público, em Luanda, Angola.

 

MATERIAL E MÉTODOS         

Realizámos um estudo transversal que incluiu os médicos que trabalham em hospitais de nível terciário do sector público do Sistema Nacional de Saúde de Angola, situados na cidade de Luanda, Angola. A recolha de dados decorreu no período de Julho a Setembro de 2019 e o estudo foi aprovado pela Comissão Científica do Departamento de Ciências Fisiológicas da Faculdade de Medicina da Universidade Agostinho Neto, em Luanda

De acordo com a Lei de Bases do Sistema Nacional de Saúde de Angola, o nível terciário é constituído por unidades sanitárias encarregues de prestar assistência diferenciada polivalente ou de especialidade à população, e integra os sectores público e privado. O sector público inclui o Serviço Nacional de Saúde, os Serviços de Saúde das Forças Armadas e do Ministério do Interior, assim como as unidades sanitárias de empresas públicas29. Com base na lei acima citada, as clínicas de empresas como Endiama, Multiperfil e Sonangol também fazem parte do sector público, apesar de terem gestão privada30. Um aspeto importante é que, na sua maioria, os funcionários que trabalham no sector público são os mesmos que colaboram no sector privado.

No presente estudo, incluímos  apenas os dados dos médicos que trabalham nas principais  instituições de saúde do nível terciário do sector público no país, sendo: (i) cinco hospitais pertencentes ao Serviço Nacional de Saúde (Hospital Américo Boavida, Hospital Josina Machel, Hospital Pediátrico David Bernardino, Hospital Psiquiátrico de Luanda e Maternidade Lucrécia Paim); (ii) um hospital pertencente às Forças Armadas (Hospital Militar Principal de Luanda); (iii) três Clínicas de empresas públicas (Clínica Sagrada Esperança, Clínica Multiperfil e Clínica Girassol).

Consideramos como unidades hospitalares do sector público aquelas tuteladas pelo Ministério da Saúde; foram consideradas como público-privadas os hospitais de empresas públicas que, apesar de pertencerem ao sector publico, estão sob gestão de carácter privado. No total, estavam registados 581 médicos que trabalhavam nas nove unidades hospitalares de terceiro nível. Endereçámos uma carta à direcção de cada unidade hospitalar elegível para solicitar a autorização da participação dos seus funcionários no estudo; no entanto, apenas seis responsáveis responderam positivamente no prazo estipulado, nomeadamente: Hospital Américo Boavida, Hospital Josina Machel, Hospital Pediátrico David Bernardino, Hospital Psiquiátrico de Luanda, Maternidade Lucrécia Paim e Clínica Sagrada Esperança. Foram convidados todos os médicos, sendo que 167 concordaram em responder ao questionário. Cada médico respondeu na instituição a que se encontrava vinculado em tempo integral. Cada participante assinou o termo de Consentimento livre e esclarecido antes do preenchimento do questionário.

Os dados foram recolhidos por autopreenchimento de um questionário, adaptado dos utilizados em estudos similares8,15,31, o qual inclui as variáveis demográficas, a caracterização profissional sob a forma de afirmações relacionadas com o grau de satisfação profissional. Realizámos um estudo-piloto com 10 médicos de duas instituições hospitalares, para aferir a qualidade do questionário mediante o cálculo do coeficiente alfa de Cronbach, para avaliar a consistência interna do questionário, e os valores variaram entre  0.53 e 0.78 (média de 0.70), o que considerámos como aceitável.

Não analisámos os questionários que continham menos de 70% de respostas. Assim, do total de 167 questionários recebidos, excluímos três por erros de preenchimento, sendo que a amostra final ficou constituída por 164 médicos.

A satisfação profissional foi avaliada mediante a afirmação “estou satisfeito”, em relação a cada item de vida profissional e que inclui: local de trabalho, especialidade, carga horária, meios de diagnóstico, segurança pessoal, liberdade de prescrição, remuneração e o desejo de escolha do mesmo curso. ue os inquiridos assinalassem o seu grau de concordância com as afirmações de satisfação em relação cada item acima mencionado utilizando a escala de Likert com cinco alternativas (1= discordo totalmente; 2= discordo; 3= concordo pouco; 4= concordo; 5= concordo plenamente).

Para efeitos de análise, as alternativas de respostas da escala de Likert foram agrupadas em duas categorias e em função disso os participantes foram classificados como satisfeitos (respostas correspondentes a escala de Likert 4 e 5), e insatisfeitos (respostas correspondentes a escala Likert abaixo de 4). A satisfação global foi definida como a atitude do profissional perante vários cenários propostos nas questões efetuadas e foi calculada a partir da média dos valores atribuídos.

Tratámos e analisámos os dados por meio do software SPSS, versão 25.0, onde calculámos as médias e desvios-padrão para as variáveis quantitativas, e frequências absolutas e relativas, para as variáveis qualitativas. Utilizámos o teste de Qui-quadrado para determinar a associação entre a satisfação e as variáveis sociodemográficas e características profissionais. Considerámos a diferença estatisticamente significativa para valores de p menor que 0.05.

 

RESULTADOS

       Participaram do presente estudo 164 médicos, o que corresponde a 28.2% da população de médicos das unidades hospitalares em estudo. Do total de participantes, a maioria foi do sexo feminino (61.6%). A média de idade dos participantes foi de 36 ± 8.4 anos, com o predomínio de indivíduos na faixa etária dos 30 a 39 anos (50.7%). Na sua maioria, os participantes eram casados e com um a dois filhos tutelados (tabela 1).

 

Tabela 1- Características demográficas dos participantes (n=164).

 

VARIÁVEIS

Nº DE INQUIRIDOS

    %

Sexo

 

Masculino

63

38.4

 

Feminino

101

61.6

 

Idade (anos)

 

≤ 39

100

72.5

 

≥ 40

38

27.5

 

Situação conjugal

 

Sem companheiro

75

45.7

 

Com companheiro

87

54.3

 

Nº de filhos tutelados

 

≤ 2

111

68.9

 

≥ 3

50

31.1

 

 

  Na tabela 2, apresentamos os dados sobre diferentes itens que compõem a satisfação profissional de maneira global, e nota-se que mais de três terços dos participantes (83.5%) relataram estar insatisfeitos profissionalmente. Com excepção dos itens liberdade de prescrição, especialidade e carreira médica, a maior parte dos médicos afirmaram estar insatisfeitos em relação aos restantes itens, com maior predomínio para os itens remuneração (92.7%), horas de trabalho (89.8%), meios de diagnóstico adequados disponíveis (80.5%) e segurança pessoal (62.8%). Ao serem questionados se voltariam a escolher o curso de Medicina, surpreendentemente quase metade dos médicos (42.7%) responderam de forma negativa.

 

Tabela 2 - Satisfação global e respostas aos diferentes itens da vida profissional (n =164).

 

 

                      SATISFEITO?

ITEM

SIM

NÃO

Segurança pessoal

61 (37.2%)

103 (62.8%)

Remuneração

12 (7.3%)

152 (92.7%)

Meios de diagnóstico

32 (19.5%)

132 (80.5%)

Liberdade de prescrição

113 (68.9%)

51 (31.1%)

Horas de trabalho

17 (10.4%)

147 (89.6%)

Carreira médica

94 (57.3%)

70 (42.7%)

Especialidade

104 (67.1%)

51 (32.9%)

Satisfação global

27 (16.5%)

137 (83.5%)

 

Tal como se pode observar na tabela 3, não houve uma associação estatisticamente significativa entre as variáveis demográficas e a satisfação global dos médicos.

 

Tabela 3 - Relação entre a satisfação global e as características demográficas

VARIÁVEIS

VALOR P

 

 

                 Satisfeito

 

 

 

SIM

NÃO

 

Sexo

Masculino

8 (12.9%)

54 (87.1%)

Feminino

18 (17.8%)

83 (82.2%)

0.405

Idade (anos)

≤ 39

17 (17%)

83 (83%)

0.792

≥ 40

5 (13.2%)

33 (86.8%)

Situação conjugal

Sem companheiro (a)

12 (16%)

63 (84%)

0.833

Com companheiro (a)

15 (17.2%)

72 (82.8%)

Nº de filhos tutelados

≤ 2

19 (17.1%)

92 (82.9%)

0.619

≥ 3

7 (14%)

43 (86%)

 

 

Analisando a relação entre a satisfação global e as características da vida profissional (tabela 4), notamos que, quanto ao local de trabalho, a maior parte dos médicos que trabalham em hospitais do sector público afirmaram estar mais insatisfeitos do que os seus colegas que trabalham em hospitais do sector público-privado (p˂0.001).

Com excepção das variáveis “outro emprego” e tempo de serviço, notou-se uma associação estatisticamente significativa entre a satisfação e as restantes variáveis profissionais; em que, na sua maioria, médicos residentes e os “médicos não especialistas” afirmaram estar mais insatisfeitos do que os médicos especialistas (p=0. 030);

Os profissionais das especialidades cirúrgicas afirmaram estar mais insatisfeitos do que os seus homólogos das áreas médicas como a Medicina Interna, a Cardiologia, a Dermatologia entre outras (p=0.010);  os médicos que relataram ter um jornada de 60 horas de trabalho por semana ou mais mostraram-se mais insatisfeitos do que os seus homólogos com jornadas menos longas (p=0.046).Também foi observada uma associação entre a satisfação e o tempo de trabalho na unidade hospitalar (p=0.047), com maior proporção de insatisfação entre os profissionais com menos de 10 anos de trabalho na unidade hospitalar actual.

 

 

Tabela 4: Relação entre a satisfação global e as características profissionais

 

VARIÁVEIS

SATISFEITO

VALOR DE P

 

Sim

Não

 

 

Local de trabalho

 

 

 

 

Público-privado

16 (42.1%)

22 (57.9%)

 

 

Público

11 (8.7%)

115 (91.3%)

<0.001

 

Possui outro emprego

 

 

 

 

Sim

4 (10%)

36 (90%)

 

 

Não

23 (18.5%)

101 (81.5%)

    0.205

 

Diferenciação profissional

 

 

 

 

Interno/policlínico

16 (12.9%)

108 (87.1%)

 

 

Especialista

11 (27.5%)

29 (72.5%)

    0.030

 

Área de especialidade

 

 

 

 

Médica

20 (23.8%)

64 (76.2%)

 

 

Cirúrgica

3 (4.2%)

69 (95.8%)

    0.010

 

Carga horária semanal (horas)

 

 

 

 

≤ 59

73 (78.5%)

20 (21.5%)

 

 

≥ 60

7 (9.9)

64 (90.1%)

    0.046

 

Tempo de serviço (anos)

 

 

 

 

≤ 10

19 (14.4%)

113 (85.6%)

 

 

≥11

8 (25%)

24 (75%)

    0.147

 

Tempo de trabalho na actual unidade (anos)

 

 

 

 

≤ 10

18 (13.6%)

114 (86.4%)

 

 

≥11

9 (28.1%)

23 (71.9%)

    0.047

 

 

DISCUSSÃO

Com o presente estudo, procurou-se determinar o nível de insatisfação profissional, e os resultados revelaram uma elevada proporção de profissionais insatisfeitos.  

O estudo envolveu uma amostra de conveniência constituída por profissionais das principais unidades hospitalares do país sedeadas na cidade de Luanda. O perfil sociodemográfico dos participantes é semelhante ao que tem sido reportado em outros estudos, apontando um certo predomínio dos profissionais do sexo feminino7,32,33. Para alguns autores, o predomínio do sexo feminino na área de saúde surge com os movimentos de feminização, que tendem a levar mudanças na relação da mulher com o trabalho7. Já a faixa etária reflecte o aumento de médicos jovens nos últimos anos, devido ao aumento da produção local originado pela criação de novas Faculdades de Medicina no país, o que tem aumentado o número de jovens médicos. Do nosso conhecimento, é o primeiro estudo realizado em Angola envolvendo os médicos de diferentes unidades sanitárias do nível terciário, avaliando os factores associados à insatisfação.

Ao analisar a magnitude de satisfação global, foi notória uma elevada taxa de insatisfação e apenas 16.5% afirmaram estar satisfeitos (tabela 1), o que é muito mais baixo do que tem sido reportado em outros estudos31,34,28. De facto, numerosos estudos têm revelado a importância da avaliação dos profissionais médicos e vários factores têm-se mostrado associados à satisfação profissional dos médicos, tais como, por exemplo, as condições do local de trabalho27, a remuneração34,35 e a relação com os colegas de trabalho36, entre outros.

Contudo, os resultados de diferentes estudos são controversos quanto aos factores associados à satisfação profissional. Alguns apontam a influência das características sociodemográficas, além de outros factores18,37, enquanto outros não encontraram nenhuma relação entre essas variáveis e a satisfação profissional, apontando apenas as características profissionais e factores sociais8,31,36. Realce-se que nenhum estudo conseguiu avaliar em simultâneo todas as variáveis de todos os componentes da satisfação. Embora o nosso estudo não tenha incluído uma avaliação dos factores sociais, observámos que, do ponto de vista estatístico, a satisfação foi associada com factores profissionais, mas não com as características demográficas, indicando que factores profissionais assumem um papel preponderante para a motivação e, por consequência, para o bom desempenho profissional dos médicos. Isto é importante, pois estudos apontam que a insatisfação profissional tem grandes repercussões na vida do próprio profissional e em outros, como os pacientes, familiares, colegas de trabalho, inclusive nos estudantes de Medicina e jovens médicos, no caso dos hospitais-escolas7,13,31.

Analisando as respostas a cada item do questionário sobre a satisfação dos médicos, houve maior proporção de médicos que relataram a insatisfação com a remuneração, horas de trabalho, meios de diagnóstico adequados e a segurança pessoal (tabela 2). A segurança pessoal no local de trabalho tem sido considerada como um factor fundamental para o desempenho das actividades, uma vez que é subjacente à protecção do trabalhador contra os riscos da saúde, promovendo a redução ou a eliminação de acidentes e outros eventos adversos no meio ambiente de trabalho38.

Além das medidas de segurança pessoal, os meios disponíveis para fazer diagnósticos correctos e completos são necessários para o bom desempenho da actividade médica, com impacto na qualidade de serviço prestado e levar ou não ao stress do profissional. Por exemplo, existe a opinião de que as más condições de trabalho podem causar stress nos médicos, podendo afectar, de forma negativa, a relação médico-paciente e aumentar a sua insatisfação com o trabalho 7.

No entanto, nem sempre as más condições de trabalho são conhecidas pelos pacientes, seus familiares, assim como pelos órgãos de  gestão  hospitalar,  que  muitas  vezes  exigem  a  qualidade de serviço prestado, mesmo com a carência de recursos materiais, o que pode levar a situações de stress, frustração e à insatisfação profissional.

No nosso estudo, notamos uma elevada proporção de médicos que relataram insatisfação com as horas de trabalho, o que, por si só, pode afectar a produtividade das instituições avaliadas. Alguns estudos têm revelado que, nos profissionais de saúde, a sobrecarga de trabalho pode levar aos piores resultados assistenciais e à insatisfação dos pacientes; e uma combinação entre sobrecarga de trabalho e insatisfação profissional pode estar associada ao desenvolvimento de Síndrome de burnout4,39,40.

A sobrecarga de trabalho tem sido analisada sob diferentes perspectivas e ela pode gerar um ciclo vicioso deletério à vida pessoal e profissional, pois, uma jornada laboral longa não permite aos médicos terem um equilíbrio entre a vida pessoal e as actividades profissionais. Foi sugerido que profissionais com sobrecarga de trabalho têm prejuízos na realização das actividades físicas e de lazer, o que potencializa os efeitos deletérios do stress e cansaço inerentes às actividades laborais, culminando com o prejuízo da saúde física e mental, reduzindo assim a satisfação profissional 7, com um grande impacto negativo na vida pessoal e familiar dos profissionais41.

Além da intensa jornada laboral dos profissionais, os resultados do presente estudo demonstraram uma grande insatisfação dos médicos com a remuneração. Esse fenómeno faz com que os profissionais busquem outras actividades laborais suplementares, o que aumenta o risco de adquirirem problemas de saúde, prejudicando a sua qualidade de vida, comprometendo a qualidade de assistência prestada aos utentes dos serviços de saúde7. No presente estudo, observamos que 23.2% dos médicos trabalhavam simultaneamente em instituições públicas e em instituições público-privadas (tabela 4), provavelmente na busca de uma melhor remuneração, o que pode trazer efeitos negativos, tanto na qualidade de serviço prestado como na vida profissional dos médicos, a curto e médio prazo, pois, estudos têm mostrado que a sobrecarga de trabalho pode afectar a saúde dos profissionais3,4,5,9

Sendo um critério para analisar o bem-estar, o salário é um aspecto fundamental da vida das pessoas. De acordo com a teoria de Hemberg, a remuneração desempenha um papel muito importante na motivação dos profissionais34. A semelhança do nosso achado, os resultados de estudos realizados no Brasil revelaram um baixo nível de satisfação com a remuneração. Nos funcionários públicos de diferentes Estados, verificou-se que, nos locais com as melhores ofertas de factores motivacionais extrínsecos e intrínsecos, ocorreram os menores índices de evasão e maiores índices de satisfação, mas o inverso foi observado nos Estados com piores ofertas34,42.

Em relação à carreira, o nosso estudo revelou que a maioria dos médicos se encontravam satisfeitos com a especialidade. Entretanto, quando questionados se voltariam a escolher o curso de Medicina, quase metade respondeu de forma negativa. Embora seja uma proporção surpreendentemente elevada, mesmo assim esses resultados são ainda mais baixos quando comparados com os resultados de estudos realizados em outros países, onde os profissionais apresentavam altos níveis de satisfação profissional e apenas manifestaram a sua insatisfação com alguns aspectos relacionados com o exercício da profissão9,31,40. Os nossos achados, confrontados com os resultados dos estudos acima referidos, indicando que, para os profissionais médicos, a satisfação das condições profissionais assume um papel determinante para continuar a prestar o seu saber em prol da vida, e a recompensa salarial vem reforçar essa sua motivação profissional e, consequentemente, conduzir a um melhor desempenho.

Os resultados de um outro estudo realizado por pesquisadores americanos mostraram que a insatisfação relacionada com a autonomia clínica, os desafios na prática da actividade clínica e o stress estavam associados a altos níveis de Síndrome de burnout43. O nosso estudo não se propôs investigar a Síndrome de burnout nesta população médica, porém, o alto nível de insatisfação profissional observado aponta para a necessidade de avaliações específicas deste fenómeno entre os médicos angolanos.

Relativamente à associação entre a satisfação global e o grau de diferenciação profissional, no nosso estudo notou-se uma maior proporção de médicos residentes e “médicos não especialistas” insatisfeitos do que os especialistas (tabela 4), o que era expectável, tendo em conta que geralmente os profissionais mais diferenciados têm melhores ordenados e oportunidades de colaboração em outras instituições com melhores condições de trabalho e de remuneração. Por outro lado, considera-se que a formação, após a licenciatura em Medicina, tem a característica de ser uma fase muito estressante, pelas suas características e exigências, uma vez que este é um novo período de aprendizagem caracterizado por muitas horas de trabalho e a particularidade de lidar constantemente com novas situações assistenciais complexas e com a falta de experiência, o que torna mais difícil a situação profissional dos jovens médicos44.

Por outro lado, verificámos que os médicos com mais de dez anos na actual unidade mostraram-se significativamente mais satisfeitos em relação aos seus colegas. A interpretação deste achado é complexa e poderia ser justificada, em parte, pelo facto de os médicos com mais tempo de trabalho numa determinada instituição estarem acostumados com as condições de trabalho, mesmo que deficientes; e, possivelmente, sejam os que têm mais oportunidades de buscar as outras alternativas de colaboração em outras instituições para melhorar a sua renda e, por isso, se tornarem alienados e habituados às deficiências no ambiente de trabalho, parecendo estarem satisfeitos.

O presente estudo apresenta limitações inerentes ao seu carácter transversal, impossibilitando a inferência de causalidade. Por outro lado, outros factores não avaliados neste estudo podem ter interferido na satisfação dos profissionais, tais como, por exemplo, o reconhecimento profissional, mudança salarial, relacionamento com os colegas de trabalho e obrigações académicas, entre outros factores5,27,28,45,46, que exercem influência sobre o grau de satisfação dos médicos. Finalmente, embora o estudo tenha avaliado os profissionais das principais unidades sanitárias do país, o facto de ter sido realizado em amostra de conveniência, não permite a generalização para a população médica do país.

 

CONCLUSÃO

Os resultados do presente estudo mostram uma elevada taxa de insatisfação profissional dos médicos que trabalham nas principais unidades hospitalares de nível terciário do país.

Os factores de insatisfação mais relatados são os atinentes a remuneração, horas de trabalho, disponibilidade de meios de diagnósticos adequados e a segurança pessoal. Com excepção do tempo de serviço e colaboração em outro emprego, a insatisfação foi associada com as restantes variáveis da vida profissional e não com as variáveis demográficas dos médicos.

Os resultados deste estudo sugerem a necessidade de uma maior atenção e ajuste de políticas que visam a satisfação das componentes social e profissional dos médicos para manter a sua motivação para o trabalho e a consequente melhoria da qualidade dos serviços prestados.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Revista Angolana de Ciências da Saúde / Angolan Journal of Health Sciences

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