.EDIÇÃO SUPLEMENTAR

Rev. Ang. de Ciênc. da Saúde. 2022 Agosto; 3 (Edição Supl.1): 5-9

e-ISSN: 2789 - 2832 / p-ISSN: 2789 - 2824

Equipa Multidisciplinar de Profissionais de Saúde, Docentes e Investigadores Nacionais

Bioética em investigação clínica no âmbito da Covid-19: disrupções, adaptações e lições

Bioethics in clinical research in Covid-19 context: disruptions, adaptations and lessons

Jorge Seixas * 1

 

1-    Unidade de Ensino e Investigação de Clínica Tropical, Instituto de Higiene e Medicina Tropical, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal. Orcid: 0000-0003-1905-137X

* -  Autor correspondente. Email: jseixas@ihmt.unl.pt

DOI: https://doi.org/10.54283/RACSaude.v3iedsupl1.2022.p5-9

Recebido: Maio 2022 / Publicado: Agosto 2022           

 

RESUMO

A investigação clínica deve obedecer a regras éticas e metodológicas bem estabelecidas por várias instituições e organizações que visam proteger o participante, respeitando os 3 princípios fundamentais da bioética: o respeito pelas pessoas, beneficência e justiça. A pandemia da Covid-19 constitui uma emergência de saúde pública que necessita de respostas rápidas para obtenção de novos medicamentos, esquemas terapêuticos, vacinas e testes de diagnóstico que permitam diminuir o impacto da infeção por Sars-CoV-2.

A pandemia constituiu um desafio para a realização de estudos clínicos, incluindo ensaios clínicos, que respeitassem os princípios estabelecidos internacionalmente de valor, ética e qualidade. As medidas de restrição à mobilidade das pessoas, que aumentaram as dificuldades de acesso, em particular dos grupos vulneráveis, bem como a necessidade de divulgação rápida dos resultados dos estudos, vieram trazer disrupções importantes na investigação clínica.

Vários mecanismos adaptativos, baseados na experiência adquirida em surtos epidémicos anteriores (Sars, H1N1, VIH/SIDA e doença por vírus Ébola) foram accionados, incluindo a disponibilização de vias rápidas para a realização de estudos clínicos, implicando modificações no modo de funcionamento dos Comités de Ética na Investigação, bem como a verificação rigorosa da validade dos resultados antes da sua publicação e divulgação.

As lições a retirar das disrupções e adaptações durante a pandemia mostram que o respeito dos valores éticos fundamentais na experimentação em seres humanos em contexto de emergência de Saúde Pública pode contribuir para uma melhor preparação na resposta face a surtos de doenças infeciosas e para a credibilidade da investigação biomédica.

Palavras-chave: Bioética; Pandemia; Covid-19

 

ABSTRACT

Clinical research must follow ethical and methodological rules well established by various institutions and organizations that aim to protect the participant, respecting the 3 fundamental principles of bioethics: respect for persons, beneficence and justice. The Covid-19 pandemic is a public health emergency that requires rapid responses to obtain new drugs, therapeutic regimens, vaccines and diagnostic tests to lessen the impact of the Sars-CoV-2 infection.

The pandemic has challenged the conduct of clinical studies, including clinical trials, that respect internationally established principles of value, ethics and quality. The measures restricting mobility of people, which increased the difficulties of access, particularly for vulnerable groups, as well as the need for rapid dissemination of study results, brought major disruptions to clinical research.

Several adaptive mechanisms, based on the experience gained from previous epidemic outbreaks (Sars, H1N1, HIV/AIDS and Ebola virus disease) have been triggered, including the provision of fast-track routes for conducting clinical trials, implying changes in the way Research Ethics Committees operate, as well as rigorous verification of the validity of results before publication and dissemination.

Lessons from the disruptions and adaptations during the pandemic show that respect for fundamental ethical values in human experimentation in the context of a Public Health emergency can contribute to better preparedness in the response to outbreaks of infectious diseases and to the credibility of biomedical research.

Keywords: Bioethics; Pandemic; Covid-19

 

INTRODUÇÃO

Nos estudos clínicos, incluindo ensaios (que avaliam produtos investigacionais, i.e. medicamentos ou vacinas), o conjunto de regras para sua realização é conhecido como “Diretrizes para a Boa Prática Clínica” (Guidelines for Good Clinical Practice, GCP). GCP é o padrão internacional mais largamente aceite para a qualidade no desenho, implementação, registo e divulgação de ensaios que envolvem seres humanos.

Na investigação envolvendo seres humanos em geral, aplicam-se princípios que são designados por  “Directrizes para a Boa Prática de Investigação” (Guidelines for Good Research Practice). Ambas directrizes evoluíram ao longo das últimas décadas e são, actualmente, internacionalmente aceites e aplicadas por várias instituições e organizações: World Medical Association (WMA), Council for International Organization of Medical Science (CIOMS), World Health Organization (WHO), Food and Drug Administration (FDA), European Medicines Agency (EMA), Centers for Disease Control and Prevention (CDC, EUA) European Center for Disease Control and Prevention (ECDC), African Center for Disease Control  and Prevention (ACDC), entre outras.

 

DESENVOLVIMENTO

1)  Disrupções em tempos de Covid-19

 As medidas de restrição à mobilidade das pessoas (confinamento, cerca sanitária, lock-down), assim como a sobrecarga dos serviços de saúde devido ao grande fluxo de doentes com Covid-19, principalmente aqueles com formas graves da doença, tiveram e têm um impacto significativo nas investigações biomédicas.  De assinalar que muitos destes doentes com formas graves de infecção pertencem a grupos de risco para Sars-CoV-2 por serem portadores de morbidades (obesidade, hipertensão, diabetes, insuficiências de órgão ou sistemas, doenças auto-imunes, neoplasias) que são, elas próprias, objecto de investigação e ensaios clínicos considerados prioritários. Um número considerável destas investigações, em planeamento ou já em curso, foram postergadas, face à prioridade atribuída à pandemia. Terão ocorrido atrasos na sua implementação ou desenvolvimento, em relação às dificuldades de acesso dos promotores, investigadores e/ou dos participantes às estruturas de saúde onde estavam planeados ou decorriam os estudos.

Os investigadores tiveram que lidar, de maneira correcta, com os desvios dos protocolos de estudo motivados por estas circunstâncias, sob pena de invalidar o estudo tal como originalmente aprovado pelos Comités de Ética e tornar a investigação não-conforme com as directrizes de GCP/GRP.     

Na investigação relacionada com a doença por Sars-CoV-2, os problemas éticos prendem-se, em particular, com os grupos vulneráveis, eventualmente mais expostos à infecção e ao mesmo tempo com menos recursos para aceder a cuidados de saúde, logo com menos possibilidades para participar nas investigações. Em particular nos países de baixos recursos, esses grupos vulneráveis têm uma expressão mais significativa do que naqueles de altos recursos. Por outro lado, indivíduos pertencentes a esses grupos poderão estar mais desejosos de participar em ensaios clínicos de tratamentos para Covid-19.  Naturalmente, percecionados como uma oportunidade de diminuir o impacto da doença, tornando-os ainda mais vulneráveis.

Estas circunstâncias realçam a importância e a necessidade de obtenção de consentimento informado correctamente elaborado no recrutamento dos participantes, em particular aqueles pertencentes a grupos vulneráveis, sob pena de incorrer em incumprimento dos princípios éticos de Respeito e Justiça. 

Como acima mencionado, em contexto pandémico, há necessidade de divulgação rápida dos resultados de estudos e ensaios clínicos.  No entanto, o contexto actual de grande pressão sobre os investigadores para publicar (conhecido como o efeito “Publish or Perish”) tem resultado num grande volume de publicações em “Pre-print” (principalmente medRxiv e bio-Rxiv), sem avaliação por pares, o que não é favorável à divulgação de resultados cientificamente válidos ou correctos, podendo mesmo permitir a publicação de estudos contendo dados inventados ou falsificados, o que claramente constitui um erro ético grave. Na verdade, não só na imprensa leiga mas mesmo nas publicações científicas, supostamente obrigadas a veicular informação correcta e isenta de influências não-científicas, assistimos a uma verdadeira infodemia.    

2) Adaptações em tempos de Covid-19

As directrizes para a investigação biomédica em tempos de surtos epidémicos estão expressas em vários documentos emitidos por instituições tais como a WHO, os vários CDCs e agências reguladoras. Estas visam garantir a segurança dos participantes, através da realização de estudos eticamente correctos e, ao mesmo tempo, encontrar o mais rapidamente possível medicamentos, vacinas ou testes de diagnóstico que permitam diminuir o impacto do surto na Saúde Pública.  Estas directrizes foram sendo construídas ao longo de várias décadas pela observação de vários surtos epidémicos de expressão restrita ou pandémica, nomeadamente as experiências prévias com Sars, H1N1, VIH/SIDA e doença por vírus Ébola.   

Uma das medidas frequentemente adotadas em situações como a pandemia de Covid-19 é a criação de vias rápidas (“Fast tracks”). Estas vias rápidas são um conjunto de procedimentos que visam facilitar o desenvolvimento de protocolos de estudos clínicos e acelerar a revisão do processo de aprovação de produtos investigacionais que preenchem uma lacuna identificada numa necessidade médica, com o propósito de obter soluções para os doentes mais rapidamente.  Aplicam-se a condições médicas graves, fatais, interferindo, significativamente, na qualidade de vida ou com tendência a progredir inexoravelmente.

Aplicam-se adicionalmente a uma situação de saúde pública existente ou emergente, em que há necessidade de encontrar tratamentos, vacinas ou outros métodos de prevenção e testes de diagnóstico para sua mitigação ou controlo.  Na actual pandemia da Covid-19 estas vias rápidas foram activadas nas instituições reguladoras de vários países.

O processo da via rápida requer uma comunicação mais precoce, mais intensa e mais frequente entre os promotores e investigadores, assim como as entidades responsáveis pela eventual aprovação do produto investigacional. Em tempos de Covid-19 esta comunicação assumiu, muitas vezes, um carácter eletrónico. Os desenhos dos estudos assumiram um carácter adaptativo para fazer face às vicissitudes e mudanças dinâmicas na epidemiologia da pandemia e as avaliações por parte das “Data Safety Monitoring Boards” tornaram-se mais frequentes.

Este processo de via rápida necessitou um envolvimento intenso dos Comités de Ética na Investigação (CEI). Na Europa por exemplo, o “European Network of Research Ethics Committees” estabeleceu que os CEIs deveriam dar clara prioridade a estudos ligados à prevenção ou tratamento de Covid-19 e doenças relacionadas. No entanto, permaneceu evidente que a pressão exercida na investigação clínica em Covid-19 não deveria levar a investigações ou testes de medicamentos ou vacinas que não estivessem conformes aos padrões éticos aplicáveis à investigação clínica de um modo geral, devendo ser assegurada a protecção da dignidade, segurança e bem-estar dos participantes, sejam doentes ou saudáveis. Neste sentido, foram também feitas recomendações sobre a necessidade de correcta elaboração do consentimento informado e livre, principalmente numa situação como a infecção por Sars-CoV-2, onde a ausência de medicamentos, esquemas terapêuticos ou vacinas pode ter uma forte influência na decisão de participar num ensaio clínico. Outras considerações foram tecidas sobre a necessidade dos CEIs terem membros experientes e devidamente capacitados (inclusive para avaliar as situações de Covid-19), disponíveis para reuniões frequentes (por vezes em carácter extraordinário), em formato virtual. Tendo em vista a observação de diferentes “Standards” entre Comités de Ética a avaliarem múltiplos protocolos em tempos de pandemia, lançou-se a proposta de uma comunicação mais transparente entre eles. A preocupação com a preservação da confidencialidade dos dados (digitais) dos participantes foi também manifestada e as recomendações foram emitidas.      

 A divulgação dos resultados é um aspecto ético fundamental da investigação clínica. No que toca à divulgação de resultados de estudos clínicos em Covid-19, assistiu-se ao estabelecimento de vias rápidas para revisão dos artigos submetidos (“Fast review”).  No entanto, a avalanche de artigos submetidos durante a pandemia parece ter levado a avaliações menos rigorosas da qualidade da evidência obtida nos estudos clínicos. Como resposta por parte dos editores das revistas científicas e eventualmente da comunidade médico-científica, assiste-se a um aumento do número de artigos aprovados para publicação e que são posteriormente retirados (“Retracted papers”). Qualquer que seja o motivo para estas publicações “precipitadas”, o fenómeno certamente não contribui para a credibilidade da ciência em geral e dos estudos clínicos em particular. Este fenómeno contribuiu por outro lado para dificultar o trabalho de revisão das evidências e estabelecimento de prioridades por parte das instituições nacionais e supranacionais e consequente emissão de directrizes e prejudicou o estabelecimento de uma comunicação científica eficiente e credível face à infodemia que acompanha a pandemia da Covid-19.

3)  Lições em tempos de Covid-19

Na investigação clínica em situações de emergência de saúde pública existe um risco real de minar a confiança da comunidade na ciência biomédica. A bioética pode dar uma contribuição para a credibilidade da investigação em biomedicina ao assegurar que, mesmo no contexto de emergência de saúde pública, continua prioritário que esta seja feita em pleno respeito pelos 3 princípios fundamentais da bioética em experimentação em seres humanos.  Ao estabelecer apreciações críticas de como isto pode ser feito em tempos de pandemia, a bioética pode também contribuir para uma melhor preparação na resposta face a emergências de doenças infecciosas em geral.  Fica também bastante evidente que a colaboração internacional deve ter primazia em relação à competição entre grupos nacionais, sob pena de desrespeitar o princípio ético de Justiça na participação na investigação clínica, nomeadamente em grupos vulneráveis e nos países menos favorecidos. 

Observou-se também que o princípio básico da Beneficência foi várias vezes desrespeitado, em prol da ganância, na maior parte das vezes não financeira, mas relacionada à obtenção de prestígio científico. Eventualmente, uma boa parte destas atitudes antiéticas, acabou por ser revelada graças à resposta dos responsáveis das publicações biomédicas à evidente necessidade de melhores mecanismos de controlo da qualidade nas publicações dos resultados. Da mesma forma, foram realizadas investigações clínicas que não criaram valor, o que, tendo em vista que os recursos (financeiros, humanos) para a realização de investigação não são ilimitados, constitui um erro ético e lhes confere um carácter fútil. O papel dos Comités de Ética assume, aqui, um papel fundamental; ao discriminar, correctamente, o valor de cada proposta de investigação clínica, bem como a sua validade científica em termos de concepção e desenho. 

Parece-nos que fica também claro que no contexto de emergência de saúde pública é importante desenvolver mais e melhores mecanismos de colaboração entre Comités de Bioética.

 

CONCLUSÃO

A pandemia da Covid-19 colocou grande pressão na busca de soluções para o diagnóstico, tratamento e prevenção da infecção por Sars-CoV-2. A investigação clínica sofreu várias disrupções, mas, construindo sobre experiências obtidas no passado, foi capaz de activar vários mecanismos adaptativos que permitiram mitigar o impacto desta pressão, contribuindo para salvaguardar os princípios fundamentais da ética de investigação em seres humanos. Ainda que muito caminho reste por fazer, esta demonstração de capacidade de adaptação é auspiciosa e contribui para a preservação da credibilidade da investigação clínica, mesmo em contexto de emergência de saúde pública.            

 

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