.EDIÇÃO SUPLEMENTAR

Rev. Ang. de Ciênc. da Saúde. 2022 Agosto; 3 (Edição Supl.1): 21-24

e-ISSN: 2789 - 2832 / p-ISSN: 2789 - 2824  

Equipa Multidisciplinar de Profissionais de Saúde, Docentes e Investigadores Nacionais

 

Ecologia integral e trabalhadores imigrantes na pandemia de Covid-19

Integral ecology and immigrant workers in the Covid-19 pandemic

Antônio Lemos * 1

1-    Sacerdote dos Legionários de Cristo, Luanda, Angola.

* -  Autor correspondente. Email: alemos@legionaries.org

DOI: https://doi.org/10.54283/RACSaude.v3iedsupl1.2022.p35-38

Recebido: Maio 2022 / Publicado: Agosto 2022             


 

 

RESUMO

No período da pandemia de Covid-19 um dos grupos mais vulneráveis é aquele composto por trabalhadores imigrantes. Longe de seus países, muitos deles não recebem assistência médica ao mesmo tempo que continuam trabalhando normalmente por desempenharem funções consideradas essenciais. Além disso, encontram-se separados de suas famílias por conta das restrições de entrada em fronteiras internacionais. Neste trabalho, queremos apresentar os princípios da ecologia integral da Igreja Católica como uma maneira de atender às necessidades mais urgentes dos trabalhadores imigrantes neste tempo da pandemia.  Vamos, primeiramente, tratar da situação dos trabalhadores imigrantes com base em alguns estudos recentes. Depois explicaremos os princípios da ecologia integral segundo a doutrina social da Igreja Católica. Por fim, com base naqueles princípios, vamos propor recomendações para policy makers com relação ao cuidado dos trabalhadores imigrantes no contexto da pandemia.

Palavras-chave: Imigração e Emigração; Direitos Humanos; Covid-19; Pandemia

 

ABSTRACT

At the time of the Covid-19 pandemic one of the most vulnerable groups is that composed of migrant workers. Far from their home countries, many of them do not receive medical assistance while continuing to work as they do essential jobs. In addition, they are separated from their families due to entry restrictions at international borders. In this paper, we want to present the principles of the Catholic Church's integral ecology as a way to address the most urgent needs of migrant workers in this time of pandemic.  We will first address the situation of migrant workers based on some recent studies. Then we will explain the principles of integral ecology according to the social doctrine of the Catholic Church. Finally, based on those principles, we will propose recommendations for policy makers regarding the care of immigrant workers in the context of the pandemic.

Keywords: Immigration and Emigration; Human Rights; Covid-19; Pandemic

 

INTRODUÇÃO

No período da pandemia de Covid-19 um dos grupos mais vulneráveis é aquele composto por trabalhadores imigrantes. Longe de seus países, muitos deles sem receber assistência médica, além de continuarem trabalhando normalmente em funções consideradas essenciais. Ademais, encontram-se separados de suas famílias por conta das restrições de entrada em fronteiras internacionais. Neste trabalho, queremos apresentar os princípios da ecologia integral da Igreja Católica como uma maneira de atender às necessidades mais urgentes dos trabalhadores imigrantes neste tempo de pandemia.  Vamos, primeiramente, tratar da situação dos trabalhadores imigrantes com base em alguns estudos recentes. Depois explicaremos os princípios da ecologia integral segundo a Doutrina Social da Igreja Católica. Por fim, com base naqueles princípios, vamos propor recomendações para policy makers com relação ao cuidado dos trabalhadores imigrantes no contexto da pandemia.

E por que tratar desse tema desde a perspectiva da Igreja Católica? A Santa Sé tem desempenhado um papel fundamental na defesa dos direitos dos imigrantes nos últimos anos. Em 2018 as Nações Unidas aprovaram o “Global Compact for safe, orderly and regular migration”. Esse é o primeiro tratado internacional sobre migração a lidar com o tema em todas as suas dimensões – família, trabalho, saúde, segurança, etc. Também foi o acordo migratório que mais atraiu países aderentes. Um total de 156 nações assinaram este global compact. O ponto relevante para nós é que os diplomatas da Santa Sé forneceram o texto-base do acordo. Esse documento é baseado no rico ensinamento da Igreja sobre o direito dos imigrantes nos últimos 60 anos. Por esse motivo, a Igreja Católica é um agente internacional de extrema relevância nos temas relacionados aos direitos dos imigrantes.

 

A situação do trabalhador imigrante

E qual é a situação do imigrante nesse tempo de pandemia? Primeiramente, é importante notar que 70% dos imigrantes internacionais transferiu-se para outro país por motivos de trabalho. Entre eles, 75% migrou para países considerados de renda alta e 23% para países de renda média1. Isso significa que a grande maioria dos imigrantes saiu de seus países por motivos de trabalho. Esses trabalhadores vivem, muitas vezes, em condições extremamente precárias com o objectivo de guardar dinheiro para enviar às suas famílias na terra natal.

Além de viver em condições degradantes, trabalhadores imigrantes possuem situação laboral mais vulnerável. Entre os principais problemas está o recrutamento ilegal e de contratos a curto prazo, as precárias condições de trabalho e de vida, e a sujeição a abusos. Além disso, é comum a longa jornada de trabalho e, frequentemente, sem acesso aos benefícios dos cuidados médicos e às condições de segurança. Essa situação é agravada por políticas públicas minimalistas. Esse tipo de política considera suficiente inserir o imigrante no mercado de trabalho, sem dar atenção às outras exigências da dignidade humana como a moradia, saúde, bem-estar da família.

O Centro de Estudos Migratórios de Nova Iorque (Center for Migration Studies of New York) apresentou um relatório demonstrando que muitos trabalhadores imigrantes fazem parte dos serviços essenciais durante a pandemia, mas carecem de serviços de saúde2. Uma análise do Migration Governance Indicators (MGI) conduzidas entre 2018 e 2020, que abrangeu 51 países, concluiu que um terço destes países proporciona o mesmo acesso aos cuidados de saúde tanto a cidadãos como a imigrantes; independentemente do seu estatuto migratório. Em metade dos países inquiridos, a igualdade de acesso aos cuidados de saúde está dependente do estatuto migratório.  Além disso, 12% dos países fornecem aos imigrantes apenas acesso a alguns serviços de saúde, incluindo cuidados de saúde de emergência3. Esse panorama mostra que a situação dos trabalhadores imigrantes é extremamente delicada. Ao mesmo tempo que muitos dedicam-se a sectores laborais essenciais que continuaram funcionando apesar do risco de infecção, um grande número deles não recebe assistência médica.

 

Os princípios da ecologia integral

Diante desta situação, o que a Igreja Católica tem a contribuir para a defesa dos direitos dos trabalhadores imigrantes na pandemia? O magistério da Igreja tem um vasto acervo de ensinamentos conhecido como “doutrina social da Igreja”. Essa doutrina promove princípios de reflexão e programas de acção na vida social com base na fé, na razão, nas ciências sociais e médicas, e nas experiências humanas comuns. Recentemente, essa doutrina social tem sido apresentada pelo Papa Francisco desde a perspectiva dos princípios da ecologia integral. Na encíclica “Laudato Si” o Papa Francisco explica que a ecologia integral é uma maneira de tratar dos problemas sociais no contexto da “casa comum”, ou seja, do ser humano em todas suas dimensões e em relação com o mundo natural inteiro4.

E quais são esses princípios da ecologia integral que interessam em nossa exposição? Primeiramente, temos que mencionar o princípio da dignidade da pessoa humana. Esse é um princípio basilar da doutrina social da Igreja e da ecologia integral. Segundo ele, o ser humano possui um valor intrínseco pelo mero facto de ser pessoa, de ser uma criatura racional criado à imagem e semelhança de Deus. Por isso, a pessoa humana deve ser respeitada e cuidada, independente da raça, nacionalidade, cor, religião. Esse princípio é essencial para promover o cuidado aos trabalhadores imigrantes. Eles merecem respeito e protecção independente da sua origem ou estado legal.

O segundo princípio que deve ser levado em consideração é o do bem comum. Em linhas gerais, podemos dizer que a Igreja trata do bem comum como as “condições de vida social” que permitem que as pessoas e os grupos alcancem sua própria perfeição. A Igreja aplica esse conceito clássico de bem comum, à família humana como um todo, no contexto dos estreitos laços de mútua dependência entre todos os cidadãos e entre todos os povos. Esse seria o fundamento bastante para permitir a migração internacional como para a regular, legitimamente, respeitando sempre a dignidade da pessoa humana. Ao controlar-se a migração respeita-se tanto o bem do país anfitrião como o bem dos próprios imigrantes.

Outro princípio essencial que faz parte da ecologia integral é o da solidariedade. Por ele se entende o princípio social e a virtude moral pela qual as pessoas e os grupos empenham-se e responsabilizam-se de forma firme e constante pelo bem comum de toda a sociedade e de seus membros, tanto em sua dimensão material como na espiritual. A solidariedade enquanto empenho pelo bem do próximo, está intimamente ligada à caridade evangélica, já que somos todos membros da mesma família humana, irmãos em Cristo ou chamados a tornarmo-nos assim. Esse princípio é um caminho para solução de muitos impasses que envolvem a migração. Essa solidariedade requer assumir a responsabilidade pelo bem do outro e tem um fundamento na própria natureza da Igreja, que é mãe de todos. Implica a hospitalidade “humanizada” aos imigrantes em todas as etapas de sua jornada. Por fim, requer ainda a formação de uma ampla cultura de acolhimento e de colaboração internacional. Isso torna-se ainda mais urgente em relacção aos trabalhadores imigrantes, os quais encontram-se em situação de extrema vulnerabilidade.

O próximo princípio que queremos apresentar é o do desenvolvimento integral da pessoa. Esse princípio promove a solidariedade ao imigrante atendendo todas as dimensões de sua existência: material, espiritual, legal, política, cultural. Nesse sentido, pressupõe a integração social e cultural, enquanto equilíbrio entre a diversidade e universalidade do fenômeno migratório. Essa integração é bilateral, ou seja, requer a participação activa do imigrante, reconhecendo sua capacidade e responsabilidade pessoal para abrir-se e contribuir para o bem comum. De contrário, a solidariedade transforma-se em mero assistencialismo.

A dignidade do trabalho humano também é um princípio muito importante para a ecologia integral. Primeiramente, cabe deixar claro que o ser humano é quem dignifica o trabalho5. Trabalhar é uma dimensão essencial da existência humana. Por meio dele a pessoa satisfaz suas necessidades básicas de alimentação, moradia, saúde, além de desenvolver seu projecto de vida e prestar serviço à sua família e a toda a sociedade. Assim, podemos dizer que o trabalho merece sumo respeito pelo facto de ser um dever do homem diante de Deus e da sociedade.

Portanto, essa dimensão existencial e social do trabalho acarreta alguns direitos. Entre esses direitos está o de imigrar para buscar melhores condições de vida. Ademais, o trabalhador imigrante não pode ser desfavorecido na sociedade estrangeira quanto aos seus direitos trabalhistas. Como vimos previamente, essa é uma ameaça sempre presente dada a situação vulnerável do imigrante. Por isso, a Igreja defende que o trabalhador imigrante deve ser tratado como os outros trabalhadores nativos. O valor do trabalho deve ser o mesmo para todos, independentemente da sua nacionalidade, religião ou raça. Não é justo que o imigrante seja explorado financeira e socialmente por conta de sua situação precária. Esse tipo de injustiça é ainda mais ultrajante quando pensamos que os imigrantes abandonam sua terra natal para precisamente fugir dessas situações de exploração. A exploração do trabalhador imigrante é uma ferida grave ao bem comum e negação da exigência de solidariedade que vimos anteriormente. Por isso, o respeito aos direitos do trabalhador imigrante deve ser parte daquela integração saudável que deve existir em prol do seu genuíno desenvolvimento integral.

O cuidado e respeito à família também é um elemento essencial da ecologia integral. A família é uma instituição fundamental da sociedade. Na exortação apostólica Familiaris consortio, fruto do Sínodo dos Bispos sobre a família de 1980, João Paulo II menciona que entre os direitos da família está o “direito de emigrar como família para encontrar vida melhor”. Este mesmo princípio já era proposto pela Constituição Pastoral Gaudium et spes que afirmava que os poderes públicos devem ajudar os imigrantes para que “possam trazer para junto de si a própria família e arranjar conveniente habitação, e favorecer a sua integração na vida social do povo ou da região que os acolhe”. No mesmo sentido, o documento Apostolicam actuositatem convida os fiéis leigos a trabalharem para que as legislações regulamentam de tal forma o fenômeno da migração que seja protegido de modo absoluto a convivência familiar6. Esse direito é uma importante resposta à grave ameaça à unidade familiar dos imigrantes.

A lesão à unidade familiar coloca em risco ainda maior as mulheres e crianças, que podem encontrar-se abandonadas e desamparadas quando o núcleo familiar é desestabilizado.

 Finalmente, temos que dar uma palavra sobre o direito de imigrar no contexto da ecologia integral. Desde o Papa João XXIII, a Igreja já reconhecia o direito à emigração e imigração, fundado na dignidade da pessoa e na pertença de todos os homens na família humana universal. Constatamos que especialmente o Papa João Paulo II buscou demonstrar que esse não é um direito absoluto e que por isso deve ser regulado pela autoridade pública competente de acordo com o bem comum. Outro princípio crucial introduzido pelo papa Polaco e seguido pelos seus sucessores é a prioridade do direito de não migrar. Isso significa que a comunidade internacional deve se esforçar, antes de tudo, para combater as causas da migração forçada e garantir que as pessoas tenham a opção de viver e se realizar em seus lugares de origem.

 

CONCLUSÃO

Como conclusão, com base nestes princípios da ecologia integral, podemos fazer uma série de recomendações a policy makers na preparação de políticas públicas voltadas para o apoio aos trabalhadores imigrantes neste período de pandemia da Covid-19.

É necessário facilitar o acesso completo aos serviços de saúde a todos os imigrantes.

O trabalhador imigrante deve ser tratado como os outros trabalhadores autóctones. Como vimos anteriormente, o valor do trabalho é o mesmo para todos, pois é baseado na dignidade da pessoa humana. Esse valor não depende de sua nacionalidade, religião ou raça.

Na medida do possível, as restrições de entrada por fronteiras, devem levar em consideração a unidade familiar, não permitindo a separação dos cônjuges e filhos a não ser por razões gravíssimas.

Por fim, recomendamos que se exclua toda a forma de discriminação de trabalho e remuneração dos imigrantes.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1.     International Migration Organization. World migration report [Internet]. 2018 [Cited 2021]. Available from: https://publications.iom.int/system/files/pdf/wmr_2018_en.pdf

2.     Kerwin D, Warren R. US Foreign-Born Workers in the Global Pandemic: Essential and Marginalized. Journal on Migration and Human Security [Internet]. 2020 [Cited May 2021]. Available from: https://cmsny.org/publications/us-foreign-born-workers-in-the-global-pandemic-essential-and-marginalized/

3.     Milan A, Cunnoosamy R. Covid-19 and migration governance: A holistic perspective. Migration Policy and Practice. 2020; 10 (2).

4.     Francisco. Carta encíclica Laudato Si, 25 [Internet]. 2015 [Cited May 2021]. Available from: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papafrancesco_20150524_enciclica-laudato-si.html

5.     João Paulo II. Carta encíclica Laborens exercens, 23 [Internet]. 1981 [Cited May 2021]. Avaiable from: https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_14091981_laborem-exercens.html

6. Concílio Vaticano II. Decreto Apostolicam actuositatem, 11 [Internet]. 1966 [Cited May 2021]. Available from: https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decree_19651118_apostolicam-actuositatem_po.html

7. Concílio Vaticano II. Constituição pastoral Gaudium et spes, 25 [Internet]. 1965 [Cited May 2021]. Available from: https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html

8. Pontifício Conselho Justiça e Paz. Compêndio da doutrina social da igreja [Internet]. 2005 [Citado 28 de Maio de 2021] Disponível: em: https://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/justpeace/documents/rc_pc_justpeace_doc_20060526_compendio-dott-soc_po.html

 

RACSaúde – Angolan Journal of Health Sciences. www.racsaude.com