………… .REVISÃO BIBLIOGRÁFICA. …………

Rev. Ang. de Ciênc. da Saúde. 2022 Jul – Dez; 3 (2): 4-9

e-ISSN: 2789 - 2832 / p-ISSN: 2789 - 2824  

Equipa Multidisciplinar de Profissionais de Saúde, Docentes e Investigadores Nacionais

 

A doença falciforme como factor protector contra a Malária

Sickle cell disease as a protective factor against Malaria

Kama Sandra Matondo Chimuco *1

1-     Hospital Municipal Olga Chaves, Lubango, Huila, Angola. Orcid: 0000-0001-5092-8243

* - Autor correspondente. Email: kamasandramatondo@gmail.com

DOI: https://doi.org/10.54283/RACSaude.v3i2.2023.p4-9

Recebido: Set 2022 / Aceite: Nov 2022 / Publicado: Dez 2022


 

 RESUMO

      A malária é uma das principais causas de morbimortalidade na África Sub-saariana, onde verifica-se também uma elevada prevalência da falciformação. Julga-se que esta frequência elevada de heterozigóticos HbAS é resultante da resistência inata à malária conferida aos portadores da variante HbS. O objectivo deste trabalho é descrever os mecanismos conferidos pela falciformação como factor de protecção contra a malária, para tal realizou-se uma revisão bibliográfica narrativa. Múltiplos estudos corroboram sobre o carácter protector da HbAS face a malária e são apontadas várias hipóteses de mecanismos moleculares bem como reações do sistema imunológico. Contudo, embora tenham sido feitos múltiplos estudos sobre a doença falciforme como factor protector contra a malária, estes não são conclusivos.

      Palavras-Chave: Doença falciforme; Malária; Anemia

 

 ABSTRACT

      Malaria is one of the main causes of morbidity and mortality in Sub-Saharan Africa, where there is also a high prevalence of sickling. This high frequency of HbAS is believed to be a result of the innate resistance to malaria conferred on the carriers of the HbS variant. The aim of this work is to describe the mechanisms conferred by sickling as a protective factor against malaria, for this reason, a narrative literature review was carried out. Multiple studies corroborate the protective nature of HbAS against malaria and several hypotheses of molecular mechanisms as well as immune system reactions are pointed out. However, although multiple studies have been carried out on sickle cell disease as a protective factor against malaria, they are not conclusive.

      Keywords: Sickle cell disease, Malaria; Anemia

 

INTRODUÇÃO

A malária é uma das principais causas de morbimortalidade nas regiões tropicais e subtropicais do mundo, exerce uma pressão evolutiva sobre o genoma humano e parece ter selecionado múltiplos polimorfismos genéticos que fornecem proteção contra doença grave. É causada por parasitas do gênero Plasmodium, com ciclos de multiplicação sexuada e assexuada, que são transmitidos pelo mosquito do gênero Anopheles infectado, que injeta esporozoítos, que reproduzem-se no interior dos hepatócitos. Depois de cerca de 8 a 9 dias, os merozoítos são liberados dos hepatócitos e invadem os eritrócitos. Ocorre uma replicação rápida antes da hemólise dos eritrócitos infectados e infecção de mais eritrócitos.1-3

Vários aspectos, tais como, a taxa de inoculação do mosquito, dose de esporozoítos, imunidade adquirida, malignidade do parasita, polimorfismos genéticos do hospedeiro, estado de nutrição do indivíduo infectado, condições ambientais e o acesso a um tratamento eficaz, contribuem para o desenvolvimento da infecção e da doença. 3

A hemoglobina falciforme (HbS) é o resultado da mutação pontual (βS) que provoca alteração morfológica dos eritrócitos, apresentando-se em forma de foice. É incurável, caracteriza-se por uma tendência dos eritrócitos acumularem-se e aderirem aos pequenos vasos sanguíneos, obstruindo o fluxo, e causando sérios problemas de saúde. Quase 80% dos indivíduos nascidos com anemia falciforme vive na África Subsaariana, onde ocorre a maioria dos casos e mortes de malária por Plasmodium falciparum. 1,4

Verificou-se uma evolução das populações, desenvolvendo variantes genéticas, a fim de protegerem-se contra a malária onde ela é endêmica. Em 1949, Haldane propôs pela primeira vez o conceito de uma vantagem do heterozigoto HbAS contra a malária, tendo vindo a ser corroborado em 1952 pelo trabalho de Alison, ligando HbAS à proteção contra a malária no Uganda. 1,3,5

Acredita-se que a frequência elevada de heterozigóticos HbAS em populações de descendência africana é resultante da resistência inata à malária conferida aos portadores da variante HbS, durante a fase crítica da primeira infância, favorecendo assim a sobrevivência do hospedeiro e consequentemente a transmissão do gene HbS. 2,6

O traço falciforme (HbAS) confere um alto grau de resistência à malária, mas o mecanismo ainda não é completamente compreendido. Postula-se que está relacionado às propriedades físicas ou bioquímicas dos eritrócitos HbAS, relativamente à invasão, crescimento e desenvolvimento de parasitas P. falciparum, os quais são reduzidos em tais células sob condições fisiológicas, e eritrócitos HbAS infectados pelo parasita também tendem a falcizar-se, processo que pode resultar na sua destruição prematura pelo baço. Os mecanismos de protecção recorrem a processos imunológicos inatos ou adquiridos.7,8

Uma melhor compreensão dos mecanismos de proteção derivados dessa mutação pontual fornecerá mais informações sobre a relação parasita-hospedeiro, incluindo como o Plasmodium interage com o sistema imunológico humano. Desta feita, constitui bjectivo desta revisão descrever os mecanismos conferidos pela falciformação como factor de protecção contra a malária.

 

METODOLOGIA

Realizou-se uma revisão bibliográfica narrativa, tendo sido utilizados artigos científcos originais e de revisão, monografias e teses de doutoramento, sem predilecção periódica, de modo a obter-se uma descrição dos mecanismos protectores da falciformação face à malária.

Foram seleccionados artigos em Inglês, Português e Espanhol, obtidos nas bases de dados Google Académico, Pubmed, SCIELO, e Biblioteca Virtual em Saúde (BVS).

Foram utilizados os Descritores em ciências da Saúde (DeCS) “Anemia Falciforme”, “Traço Falciforme”, “Malária”, em português; e “Sickle Cell Anemia”, “Sickle Cell Trait”, “Malaria”, “ Anemia de Células Falciformes”, “Rasgo Drepanocítico”, “Malaria”, em inglês e espanhol, respectivamente.

 

DOENÇA FALCIFORME E MALÁRIA

O desenvolvimento intracelular normal do Plasmodium é acompanhado por diversas alterações estruturais, bioquímicas e funcionais nos eritrócitos, envolvendo interações entre determinantes genéticos, bioquímicos e imunológicos. Factores do hospedeiro podem influenciar na susceptibilidade do indivíduo em desenvolver a malária, ou seja, o Plasmodium depende do hospedeiro para sobreviver, logo, qualquer perturbação na composição ou no arranjo de proteínas dos eritrócitos pode potencialmente impedir o crescimento e a sobrevivência do parasita e aumentar a resistência à infecção. Qualquer perturbação nas vias de invasão do parasita é benéfica ao hospedeiro e várias alterações hematológicas podem afetar o desenvolvimento da doença.9,10

O P. falciparum é predominante na África subsaariana, e em países endêmicos a infecção por este, causa uma série de desfechos incluindo parasitemia assintomática, doença não complicada e malária grave, que geralmente progride para morte.1,11

Estudos recentes constatam que há uma forte associação geográfica entre as frequências alélicas mais altas da HbS e a alta endemicidade da malária em escala global, e particularmente na África subsaariana. O aumento gradual das frequências alélicas de HbS de áreas epidêmicas para áreas holo-endêmicas em África é consistente com a hipótese de que a proteção da malária por HbS envolve o aumento não apenas da imunidade inata, mas também adquirida ao P. falciparum.1,3,9,10,12

Actualmente é amplamente aceite que a persistência da mutação falciforme em populações humanas deve-se à protecção contra malária, conferida a indivíduos heterozigotos, relativamente a sintomas agudos associados às infeções por P. falciparum. Este efeito benéfico para o hospedeiro parece ter levado a uma seleção natural deste gene na África subsaariana.1,5,11

Sugere-se  que  embora  indivíduos  HbSS geralmente  morram antes  da idade adulta, o gene responsável pela drepanocitose poderia atingir altas prevalência devido à resistência conferida à malária pelo estado de portador heterozigoto (HbAS). 10

Estudos realizados em vários países africanos revelam múltiplas evidências epidemiológicas da diminuição do risco das manifestações de malária grave, ocasionado pelo traço falciforme (HbAS), e este efeito protector originou um polimorfismo equilibrado da mutação falciforme (HbS) nas regiões endêmicas de malária.1,3,9,10

A malária pode actuar como um gatilho para a falcização intravascular, uma vez que células parasitadas de heterozigotos HbAS tendem a falcizar mais facilmente do que células não parasitadas. A morfologia dos eritrócitos depende da taxa de desoxigenação da hemoglobina, sendo que quando esta ocorre, a HbS forma agulhas paracristalinas modificando a morfologia das células homozigóticas HbSS e das heterozigóticas HbAS, transformando-as na sua forma falciforme peculiar e alterando a viscosidade intracelular. A desoxigenação lenta resulta na forma clássica de foice e a desoxigenação rápida produz células que não parecem falciformes, tendo uma forma de disco bicôncavo quase normal.3,10

Múltiplos estudos, consistentes, indicam que a HbAS é de 70-90% protectora contra malária grave, malária cerebral e anemia malárica grave, e 75% protetora contra hospitalização por malária. Aponta-se uma redução de 60% na mortalidade geral em crianças HbAS de 2 a 16 meses, em comparação com crianças HbAA. Há uma prevalência reduzida de parasitemia em indivíduos HbAS em comparação àqueles HbAA.1,5

Os resultados de um estudo realizado no Uganda conduzem a dedução de que a protecção proporcionada pela HbAS passa tanto pelo impacto no desenvolvimento da parasitemia quanto no controlo da mesma, pois, os seus resultados revelaram que a HbAS protegeu contra o estabelecimento de parasitemia ao diminuir a força de infecção (número médio de cepas de parasitas) e a probabilidade de desenvolver sintomas clínicos ante altas densidades de parasitas durante a malária sintomática. 1

Um estudo realizado por Aidoo et al.13, também corroborou com outros estudos ao verificar que a HbAS está associada à proteção contra a mortalidade por malária grave com alta parasitemia por P. falciparum,  em crianças dos  2–16 meses de idade, levando-os a deduzir que a protecção mediada por HbAS será evidente principalmente antes que um nível significativo de imunidade clínica seja alcançado. Outros resultados desse estudo referem a falta de protecção aparente contra a mortalidade em crianças com o gene HbAS nos primeiros 2 meses de vida, depreendendo que pode ser devido à imunidade protetora transferida pela mãe ou à presença, de níveis elevados de hemoglobina fetal. Verificou também a falta de associação de HbAS com mortalidade após os 16 meses de idade, inferindo que provavelmente reflete uma redução na morbidade e mortalidade graves associadas à malária como consequência do desenvolvimento de imunidade clínica, e não da ausência de um efeito protector. 13

Com vista a procurar perceber o mecanismo protector, são levantadas várias hipóteses explicativas.

 

Mecanismos moleculares e imunológicos de proteção

Hipótese A - Formação de rosetas: alterações bioquímicas e mecânicas nos glóbulos vermelhos HbAS infectados demonstraram alterar a progressão da doença. Acredita-se que a formação de rosetas, que é a ligação de eritrócitos infectados por P. falciparum a eritrócitos não infectados, leve à obstrução da microcirculação na malária cerebral. Verificou-se que este processo de formação de rosetas, em condições de desoxigenação, estava prejudicadando os eritrócitos HbAS infectados. Isto pode ser devido ao aumento da falcização dessas células em condições desoxigenadas ou à expressão reduzida de proteínas de adesão à superfície dos eritrócitos. A diminuição da formação de rosetas e a consequente diminuição da obstrução circulatória podem contribuir para a proteção contra a malária grave em indivíduos HbAS.1,9

Hipótese B – Alteração da composição do meio: sob condições de baixa tensão de O2, tanto as células falciformes homozigóticas HbSS quanto as heterozigóticas HbAS não suportam o crescimento de P. falciparum, em contraste com os eritrócitos HbAA. Julga-se que a HbSS tem maior propensão para polimerizar, criando um ambiente não propício ao crescimento do parasita. Foi levantada a hipótese de que o baixo potássio intracelular, as altas concentrações de hemoglobina ou a desidratação dos eritrócitos causam um ambiente inóspito para os parasitas. Relativamente às células HbAS, supõe-se que pelo menos 80% das células HbAS são reoxigenadas na circulação antes de se tornarem falciformes, no entanto, ao ficarem presas na circulação venosa, a grande maioria torna-se falciforme. Acredita-se que isso ocorra durante os estágios finais da multiplicação do P. falciparum (1,5,10).

Hipótese C - Falcização dos eritrócitos: os parasitas P. falciparum induzem a falcização dos eritrócitos HbAS. Foi demonstrado que os eritrócitos com maior grau de deformação falciforme contêm uma grande quantidade de polímeros de Hb alinhados. Levanta-se a hipótese de que um aumento na hemoglobina polimerizada ou um pH intracelular reduzido pode causar aumento da falcização. O  aumento da falcização dos eritrócitos parasitadas em indivíduos HbAS pode promover fagocitose aumentada de células infectadas e, portanto, resultar em parasitemia reduzida em comparação com indivíduos HbAA.1,10 Os eritrócitos HbSS têm uma maior capacidade de induzir imunidade, resultando em uma eliminação mais rápida de eritrócitos parasitados.5

Hipótese D – microRNAs: os miRNAs são uma classe recentemente descoberta de pequenos RNAs eucarióticos não codificantes com 18 a 24 nucleotídeos de comprimento que regulam negativamente os genes-alvo em um nível pós-transcricional. Pelo menos dois microRNAs humanos (miRNAs), miR-451 e miR-233, são mais abundantes nas células HbSS e nas células HbAS em comparação com os eritrócitos normais. O miR-451 é translocado para o parasita, onde é incorporado covalentemente em mRNAs de P. falciparum, levando a uma inibição da tradução de mRNA e uma redução modesta mas significativa no crescimento do parasita.1,5

Hipótese E - Sistema imunológico inato: a fagocitose de eritrócitos HbAS infectadas com P. falciparum em estágio de anel, por monócitos, é maior em comparação às células HbAA infectadas, fornecendo evidências de um papel do sistema imunológico inato na proteção contra P. falciparum em indivíduos HbAS. O aumento da fagocitose pode ser devido ao aumento da apresentação de opsoninas (que são maiores em eritrócitos HbAS infectadas comparativamente à eritrócitos HbAA), que se acredita estarem envolvidas na remoção de glóbulos vermelhos senescentes. A depuração por monócitos de eritrócitos com fosfatidilserina exposta, um marcador de superfície de eritrócitos danificados, está aumentada em células HbAS infectadas em comparação com HbAA.1,7

O aumento da opsonização e depuração pelo baço de eritrócitos HbAS parasitadas, pode levar ao aumento da apresentação de antígenos e ao desenvolvimento precoce da imunidade adquirida em comparação com indivíduos HbAA.1

Demonstrou-se que a HbS é substancialmente mais instável do que a HbA e sugere-se que, ao agrupar as proteínas da membrana dos eritrócitos, pode acelerar a sua remoção pelas células fagocíticas.10

Hipótese G - Sistema imunológico adquirido: estudos populacionais chegaram à conclusão que o efeito protector da HbAS aumenta com a idade. Na Nigéria, estudos verificaram uma densidade parasitária média significativamente menor em HbAS comparativamente à crianças HbAA de dois a quatro anos, mas não em crianças menores de dois anos. No Quénia, em crianças HbAS a proteção contra a malária sintomática aumentou de 20% em crianças com menos de dois anos para um pico de 56% aos dez anos de idade.1

Estudos corroboram que a proteção contra o estabelecimento de parasitemia e o desenvolvimento de malária sintomática, uma vez parasitemica, aumenta significativamente nos primeiros 10 anos de vida, sendo considerado como uma aquisição acelerada de imunidade. Demonstrou-se que crianças HbAS neste intervalo de idade estão protegidas contra o estabelecimento de infecção do estágio sanguíneo, o desenvolvimento de altas densidades de parasitas, e a progressão da infecção à malária sintomática. 1,10,14

Deduz-se que os antígenos de superfície clonalmente variantes (VSA) de P. falciparum inseridos nas membranas de eritrócitos infectados, constituem alvos de respostas de anticorpos, intensificando-se com a idade e associa-se à proteção contra malária. Foi identificada uma associação entre a presença de respostas HbAS e IgG anti-VSA, confirmando que níveis aumentados de respostas anti-VSA de reação cruzada em crianças com HbAS podem estar fortemente associados à proteção contra a malária. 1,10,14

Foram encontrados níveis aumentados de gamaglobulina em crianças HbAS em comparação com crianças HbAA. Na Gâmbia, Gabão e Burkina Faso, indivíduos HbAS tiveram uma resposta com níveis mais altos de IgG direcionados às proteínas da família PfEMP-1, no entanto, em estudos em áreas de alta transmissão de malária não foi encontrado aumento da resposta de anticorpos ao PfEMP-1 em crianças HbAS, inferindo-se  que nessas áreas de alta transmissão de malária foram observadas respostas robustas na maioria das crianças. A identificação de altos níveis de IgG contra PfEMP-1 e não contra outros antígenos do parasita sugere que a resposta imune humoral aumentada em indivíduos HbAS pode ser direcionada a proteínas na superfície do eritrócito infectado, podendo este fenômeno ser atribuido ao aumento da captação esplênica de eritrócitos infectados em indivíduos HbAS e, portanto, melhor apresentação de antígenos de superfície.1

Sugere-se que a apresentação da proteína de maior virulência, PfEMP1, na superfície de eritrócitos infectados (que permite a aderência às células endoteliais na microvasculatura) é prejudicada em eritrócitos HbSS. Apenas eritrócitos infectados que expressam PfEMP1 apresentam polimerização significativa de Hb, porque são as únicas células que se sequestram na microvasculatura hipóxica.1,3,5,15

A cito-aderência é um elemento importante na progressão para malária grave, uma vez que leva à ativação endotelial e inflamação associada no cérebro e em outros órgãos. Atendendo que esta permite que os parasitas se sequestrem na vasculatura e evitem a eliminação pelo baço, a cito-aderência reduzida também tem sido implicada como um mecanismo de protecção em indivíduos HbAS (considera-se que possa levar ao aumento da depuração esplênica).1,5,15

A protecção contra altas densidades parasitárias observadas em idades mais jovens pode melhorar o desenvolvimento da imunidade adquirida, pois, a parasitemia pode interferir no desenvolvimento de uma memória imunológica efectiva.1

Um estudo revelou que uma resposta linfoproliferativa média a antígenos solúveis de P. falciparum purificados por afinidade foi significativamente maior em crianças HbAS em comparação com crianças HbAA, mas não foi encontrada uma diferença significativa em adultos HbAA e HbAS. A resposta linfoproliferativa é suprimida durante e após a infecção aguda da malária em indivíduos HbAA. Os resultados sugerem uma resposta celular mais robusta ao P. falciparum em crianças HbAS, mas não está claro se esta é uma causa ou consequência dos efeitos protectores da HbAS.1

Foi postulada a hipótese de que o heme livre sinergiza com outros agonistas citotóxicos como as células T CD8+ patogênicas. No entanto, deduz-se que tanto o acúmulo de heme livre patogênico quanto a ativação e/ou expansão de células T CD8+ patogênicas parecem ser reprimidas pela HbS. Numa pesquisa com camundongos, verificou-se que existem níveis aumentados de hemeoxigenase-1 (HO-1), uma enzima que degrada o heme livre, em indivíduos HbS. Infere-se que a HbS suprime a patogênese da malária induzindo a expressão de HO-1 e prevenindo o acúmulo de heme livre de citotóxicos, limitando o dano tecidual subsequente após a infecção, e ocorre diminuição da expansão de células T CD8 citotóxicas.1,10

Tudo o anteriormente exposto conduz à interpretação de que a doença falciforme não confere total proteção contra a infecção pelo Plasmodium, reduzindo apenas o desenvolvimento da doença uma vez instalada e, consequentemente, a morbidade e mortalidade associadas à malária.

Embora aponte o carácter protector da doença falciforme face à malária, Williams et al.8 citam razões, corroboradas por Luzzato (2012), pelas quais a malária pode ser mais perigosa em pacientes homozigóticos HbSS. Primeiro, a hemólise crônica experimentada por pacientes com a doença falciforme está associada a uma reticulocitose acentuada, o que pode torná-los mais susceptíveis às infecções por malária.8,14

Segundo, outra característica central da doença falciforme é a deterioração precoce da função esplênica por auto-infarto e, como o baço desempenha um papel importante na imunidade contra a malária, pode estar associada a uma redução na capacidade de depuração dos eritrócitos infectados. Terceiro, os indivíduos com doença falciforme são cronicamente anémicos com concentrações de hemoglobina ao redor 6-8 g/dl. Uma queda rápida desses valores da Hb devido à hemólise ou eritropoiese ineficaz, característico das infecções por malária, pode ser catastrófica.8,14 Quarto, é provável que a hipóxia tecidual e os processos inflamatórios, comuns na infecção por malária, sejam potentes desencadeadores de "crises de sequestro", dadas por sequestro dos eritrócitos no baço, pulmões e outros órgãos profundos, resultando em declínios súbitos nas concentrações periféricas de hemoglobina. 8,14,16

Apesar de que os indivíduos com doença falciforme possam ser relativamente resistentes à infecção por malária, quando são infectados, a doença pode ter consequências graves e às vezes fatais. 3,8,14,16

Segundo Luzzato14, para heterozigotos (HbAS) a frase “resistente à malária” deve ser considerada uma abreviação de “relativamente protegido de morrer de malária”. Enfatiza que indivíduos HbAS contraem malária e tendem a ter números mais baixos de eritrócitos parasitadas no sangue. Ademais, têm uma incidência diminuída da malária cerebral e da malária com anemia grave, reconhecidas como de risco imediato à vida. Aponta também que muito raramente os indivíduos HbAS morrem de malária, mesmo nos raros casos em que desenvolvem malária cerebral; e, que em África, uma vez que a malária contribui substancialmente para a mortalidade precoce de pacientes com doença falciforme, é imperativo que estes sejam protegidos com profilaxia antimalárica ao longo da vida.14

 

CONCLUSÃO

Os múltiplos estudos realizados sobre a doença falciforme como factor protector contra a malária, embora consistentes não são conclusivos.

A HbAS tem sido repetidamente identificada como um importante fator de resistência à malária, contudo, o mecanismo exato não é claro. São levantadas múltiplas hipóteses tanto à nível de mecanismos moleculares como à nível do sistema imunológico.

A alta prevalência de HbS na África Subsaariana é provavelmente devido à proteção contra a malária conferida aos HbAS. A malária influencia grandemente a epidemiologia da doença falciforme, e a doença falciforme afeta o curso clínico da malária. O aumento gradual das frequências alélicas da HbS de áreas epidêmicas para áreas endêmicas na África é consistente com a hipótese de que a proteção da malária pela HbS envolve o aumento da imunidade inata e adquirida ao P. falciparum.

Existem muitas evidências de que apesar de aparentemente não diminuir o risco de infecção por P. falciparum, desempenha um papel protector contra as  formas  graves de doença, provavelmente porque dificulta

 

a invasão e crescimento dos parasitas no interior dos eritrócitos.

Embora a maioria dos estudos aponte a doença falciforme como protectora contra a malária, alguns estudos consideram que quando o indivíduo é infectado, as consequências podem ser graves.

 

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