………….CASO CLÍNICO.…………

Rev. Ang. de Ciênc. da Saúde.2022Jul – Dez; 3 (2):17-21

e-ISSN: 2789 - 2832 / p-ISSN: 2789 - 2824 

Equipa Multidisciplinar de Profissionais de Saúde, Docentes e Investigadores Nacionais

Apresentação de dois casos clínicos de Leishmaniose em Angola

Presentation of two clinical cases of Leishmaniasis in Angola

José Muetunda Pedro * 1 , Lucas António Nhamba2  , Victor Manuel Eng Rodriguez3

 

1- Direcção Municipal de Saúde do Londuimbali, Huambo, Angola. Orcid: 0009-0006-3536-6987

2- Gabinete Provincial de Saúde, Huambo, Angola. Orcid: 0000-0001-6092-625X 

3- Hospital Municipal do Londuimbali, Huambo, Angola. 

* - Autor correspondente. Email: muetundangola@yahoo.es 

DOI: https://doi.org/10.54283/RACSaude.v3i2.2023.p17-21               

Recebido: Ag 2022 / Aceite: Out 2022 / Publicado: Dez 2022


                                                                                                            

RESUMO

Em vários países em desenvolvimento, pouco se sabe sobre a Leishmaniose. Em Angola são escassas as reportagens de casos, ainda que se conhece a presença do vector.

Apresentamos dois casos clínicos de Leishmaniose cutânea reportados em 2019, sendo o primeiro referente a paciente masculino de 18 anos de idade, residente da aldeia de Tchissengue, zona rural, município de Londuimbali, província Huambo, procurando atendimento médico por apresentar no dorso do dedo grande do pé direito, uma lesão ulcerosa única com mais de um ano de evolução. E o segundo trata-se de um paciente do sexo masculino de 26 anos de idade, procedente do mesmo local que apresentava múltiplas lesões na pele do membro inferior direito. Os casos clínicos apresentados evidenciaram a positividade para Leishmaniose cutânea como resultado dos exames de laboratórios que incluíram, biópsia para o estudo anatomopatológico e confirmação por PCR pelo Laboratório do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, Portugal.

Palavras-chaves: Leishmaniose Cutânea, Doenças Negligenciadas, Psychodidae

 

ABSTRACT

In several developing countries, little is known about Leishmaniasis. In Angola, reports of cases are scarce, even though the presence of the vector is known.

We present two clinical cases of cutaneous leishmaniasis reported in 2019, the first case is of a male patient, aged 18 years old, of the village of Tchissengue, rural area, municipality of Londuimbali, Huambo province, seeking medical attention for after presenting a single ulcerative lesion on the dorsum of the big toe of the right foot, with more than one year of evolution. And the second is a 26-year-old male patient from the same place who presented multiple lesions on the skin of the right lower limb. The clinical cases presented showed positivity for cutaneous Leishmaniasis as a result of laboratory tests that included biopsy for anatomopathological and confirmed by PCR by Institute of Tropical Medicine, Portugal.

Keywords: Neglected Diseases, Cutaneous Leishmaniasis, Psychodidae

          

INTRODUÇÃO

A Leishmaniose é uma doença parasitária de distribuição mundial que pertence ao grupo das 10 principais Doenças Tropicais Negligenciadas (DNT). É provocada por espécies de protozoários do gênero Leishmania, transmitidas mediante a picada de flebotomíneos da família Psychodidae. Actualmente reporta-se existirem 22 espécies envolvidas na transmissão da enfermidade aos humanos.  Sua presença está diretamente ligada à pobreza, portanto, condições ambientais e socio-culturais exercem algum impacto sobre a ocorrência da doença.1, 2

Existem três formas principais da doença em humanos, nomeadamente a Leishmaniose cutânea (LC) que causa ferimentos na pele, sendo a forma mais comum; Leishmaniose visceral (LV) também conhecida por Kalazar, que acomete vários órgãos internos (geralmente medula óssea, baço e fígado), forma mais grave; e a Leishmani-se mucocutânea (MC), forma mais incapacitante da doença.1, 3

Até outubro de 2022, a LC foi considerada endêmica em 87 (53,6%) países, e em 3 (1,5%) houve casos reportados. À mesma data a LV foi considerada endêmica em 79 (49,7%) países e em 5 (2,6%) houve casos reportados.4, 5Em vários países em via de desenvolvimento, pouco se sabe sobre esta doença infecciosa negligenciada. Em Angola são escassas as reportagens de casos de Leishmaniose, ainda que se conhece a presença do vector, por outro lado, não  se tem notificado as autoridades competentes, pois, não existem informações precisas sobre a presença da enfermidade.

Desta feita, em 1963, um grupo de pesquisadores portugueses suspeitaram de  três casos de LC em crianças na província do Huambo.6 Na década de 1990 em Espanha, foi diagnosticado um caso de LV em um paciente masculino de 26 anos de idade proveniente de Angola, sendo o primeiro caso de Leishmaniose por L. infantum diagnosticado na região sul de África. Mais recentemente, uma pesquisa serológica e molecular em Luanda, revelou a existência de dois cães seropositivos para Leishmania sp. sendo um deles confirmado tratar-se de L. infantum.8

 

CASO CLÍNICO 1

     Paciente masculino de 18 anos de idade, residente na aldeia de Tchissengue, zona rural do município de Londuimbali, província Huambo. Que em 2018 procurou atendimento médico por apresentar no dorso do dedo grande do pé direito, uma lesão ulcerosa única, com mais de um ano de evolução.

Ao interrogatório, nega ter viajado para zonas endêmicas, e ter estado em contacto com pessoas acometidas pela enfermidade. Refere que a lesão teve início como uma borbulha avermelhada, depois da picada de um insecto, quando realizava actividades no campo. Notou-se persistência da mesma, evolução lenta e posteriormente ulceração, apesar do tratamento tópico e sistémico com antimicrobianos e antimicóticos indicados na sua localidade de procedência.

Ao exame físico observou-se uma ulceração ovalada (Fig. 1 A), de aproximadamente 2,5 × 1,5 cm, eritematosa, com bordos elevados bem delimitados, hiperémicos e endurecidos, assim como uma crosta central. Realizaram-se exames complementares, como microscopia óptica, com evidências de Amastigotas de Leishmania, biopsia de pele, observando-se granulomas constituídos por células gigantes tipo Langerhans e células epitelioides, bem como intensos infiltrados inflamatórios compostos por linfócitos, plasmócitos e neutrófilos.

O estudo Anátomo-patológico demonstrou, hiperqueratose, congestões vasculares e inflamação crônica na superfície da derme papilar. O exame de PCR pelo Laboratório do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (Portugal)9 confirmou à presença de Leishmanias sp.

Confirmado o diagnóstico, prescreveu-se o tratamento com azitromicina na dose de 500 mg/dia durante três dias consecutivos, repetindo a mesma dose 10 dias depois, tendo evolução favorável.

 

Leish.jpg

Figura 1 A – Paciente com lesão ulcerosa única no dorso do dedo grande do pé direito. B – Colecta da amostra a partir da borda da lesão

 

CASO CLÍNICO 2

Paciente do sexo masculino de 26 anos de idade, procedente da aldeia de Tchissengue, município do Londuimbali, província do Huambo, camponês, avaliado pelo dermatologista vinculado ao Hospital Geral do Huambo no ano de 218, por apresentar múltiplas lesões na pele do membro inferior direito.

Ao interrogatório refere que há 8 meses começou por presentar no membro inferior direito lesões na pele tipo borbulhas avermelhadas em número de três (Fig. 2), sendo que duas das quais ulceradas.

Ao exame físico dos fragmentos de pele, descrevem-se duas (2) formações de tecido (sendo a maior com  1,5x0,5cm), de cor castanha, consistência mole, ulcerosas recoberta por crostas.

Os exames anatomopatológicos, informaram a presença de hiperplasia pseudo-epiteliomatosa, hiperqueratose da epiderme com ulceração na superfície, intenso infiltrado inflamatório linfoplasmocitário e macrófago misturado com células na derme, cogestão vascular, tal como hiperplasia endotelial. Também foi possível observar estruturas puntiformes no interior dos macrófago sugerindo estarem relacionadas com o parasita.

O diagnóstico da Leishmaniose foi confirmado após a extração do DNA, mediante análise de sequenciamento por PCR pelo Laboratório do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (Portugal)9, impondo-se posteriormente tratamento com azitromicina na dose de 500 mg/dia durante três dias consecutivos, repetindo a mesma dose 10 dias depois, tendo evolução favorável.

 


Figura 2 – Paciente com múltiplas lesões na pele do membro inferiores direito

 

DISCUSSÃO

A Leishmaniose é uma parasitose de grande importância em todo o mundo, nos últimos anos aumentou sua frequência e distribuição. Isto pode estar associado principalmente ao aquecimento global e à invasão contínua de ambientes da selva pelos seres humanos, por razões urbanas ou para adquirir terras agrícolas maiores.10

A Leishmaniose é causada por um protozoário (Leishmania) e transmitida por flebótomos. É das chamadas enfermidades tropicais desatendidas ou negligenciadas, que afecta de maneira desproporcional as populações mais pobres e as pessoas que vivem nas zonas rurais, remotas ou com acesso limitado ou nulo a atenção médica. Suas formas clínicas (cutânea, visceral), a complexidade e a distribuição da doença em distintas regiões são alguns dos desafios para controlar a enfermidade. As cicatrizes deixadas pela LC podem ter um importante impacto psicossocial na vida do individuo.11

Tanto a LV como a LC possuem distribuição geográfica limitada, porém, podem mostrar uma alta variabilidade, tanto entre países como entre zonas no mesmo país. Os movimentos populacionais devido a conflitos ou estiagens, combinado com um sistema de saúde débil ou com um funcionamento deficiente, provocam a expansão da enfermidade a novas áreas e a aparição de epidemias. A não existir uma vacina ou medidas de combate aos vectores, o controlo da Leishmaniose em África continua baseando-se no diagnóstico e o tratamento dos casos.

Angola, segundo reportado pelo relatório da OMS4, até a data consultada (10 de Março de 2023), o gráfico interactivo para a L. cutânea, não havia casos autóctones registados de Leishmaniose, ainda que vários países fronteiriços como o Congo e Namíbia a tenham reportado.

Em condições ideais, é importante confirmar o diagnóstico da doença, devido a sua relevância no tratamento e prognóstico. Em países onde não existam casos reportados não de deve-se descartar a existência da mesma.                          

     Para os pacientes dos casos clínicos apresentados, as  lesões  apresentaram-se  de maneira  localizada, ulcerosa                       

e assintomática nos membros inferiores, sem fazer referência a outra sintomatologia como adenomegalia, que levasse a pensar na possibilidade de afecção sistémica.

A confirmação diagnóstica da Leishmaniose é realizada principalmente pela descoberta de amastigotas no esfregaço directo retirado da borda da lesão (Fig. 1 B) que geralmente apresenta-se como lesões ulcerativas superficiais e circulares de bordas altas, bem definidas, leito central de tecido de granulação, base aparência carnuda e com exsudado amarelado.12

Os métodos de diagnóstico parasitológico são específicos, entretanto, pouco sensíveis (79%), ainda assim, são acessíveis e devem aplicar-se em todas as formas clínicas da LC, em contrapartida, os estudos histopatológicos tem uma sensibilidade de 70%13,14.  

A utilização do método de diagnóstico por PCR demostrou a mais alta sensibilidade nas apresentações típicas (100%) e atípicas (94%), e uma especificidade de 100%, segue-se a inmuno-histoquímica com 97% de sensibilidade e 100% de especificidade15.

Na actualidade, para o tratamento da Leishmaniose, tem-se alcançado resultados clínicos e microbiológicos satisfatórios pela utilização de antimoniais pentavalentes na forma de estibogluconato sódico, o antimoniato de N-methylglucamine (Glucantime). Outras opções disponíveis incluem, a pentamidina, anfotericina, azólicos, trimetoprim, sulfametoxazol, dapsona, azitromicina e miltefosina.16

Apesar das vantagens acima mencionadas oferecidas pelo tratamento da Leishmaniose com compostos antimoniais, infelizmente, em Angola este medicamento não esteve ao nosso alcance, portanto, foi necessário administrar tratamento aos pacientes com uma das alternativas terapêuticas, isto é, azitromicina na dose de 500 mg/dia durante três dias consecutivos, repetindo a mesma dose 10 dias depois.

Decorridos dois (2) meses as lesões desapareceram (Fig.3), a área da pele afectada mostrou-se despigmentada com aparência de uma queimadura sem deixar cicatriz deformada.

Azitromicina indicada na dose de 500 mg/dia por 10 dias consecutivos em três ciclos, com intervalos de um mês, por via oral, tem sido utilizada no Brasil em pacientes com LC e LV e nenhum efeito adverso foi relatado com o seu uso. Sugere-se que a azitromicina tenha uma actividade potencial na LC, tal como observou-se a resposta terapêutica aos casos em referência.17

 

Figura 3 – Antes e depois (da esquerda a direita do observador) do tratamento feito a base de azitromicina.

 

CONCLUSÃO

     Os casos clínicos apresentados evidenciaram a positividade de LC como resultado dos exames de laboratórios que incluíram, biópsia para o estudo anatomopatológico e confirmação por PCR pelo Laboratório do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (Portugal), em pacientes vinculados a actividades agrícolas, reportando haver sido picados por mosquitos, numa zona com características propícias para sobrevivência de flebótomos.

      Não havendo registos ao Observatório Global de Saúde da OMS referentes a endemicidade da doença em Angola à data de publicação do presente manuscrito, os casos clínicos apresentados tornam-se motivo de um despertar das autoridades competentes com vista a realização de pesquisas aprofundadas, de modo a se aferir a sua magnitude em Angola.

 

Protecção de pessoas e animais

Os autores declaram que os procedimentos estão de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos responsáveis da Comissão de Investigação Clínica e Ética e de acordo com a Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial actualizada em 2013.

Confidencialidade dos dados 

Os autores declaram ter seguido os protocolos do seu centro de trabalho acerca da publicação de dados.

Conflito de interesse

Os autores afirmam não haver conflito de interesse relacionados com a presente pesquisa.

Fontes de Financiamento

Esta pesquisa não recebeu qualquer tipo de suporte financeiro.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

1. Centers for Disease Control and Prevention. Leishmaniasis  [Internet]. United State of America: CDC; 2020 [cited 2023. Available from:https://www.cdc.gov/parasites/leishmaniasis/

2. Organización Panamericana de la Salud. Leishmaniasis [Internet]. United States of America: PAHO; 2022 [cited 2023]. Available from: https://www.who.int/health-topics/leishmaniasis

3. Neves DP.Parasitologia humana. 13ª. Brasil: Atheneu; 2022. 616p.

4. World Health Organization. The Global Health Organization Repository: Leishmaniosis [Internet] United States of America: WHO; 2022 [cited 2023]. Available from: https://www.who.int/data/gho/data/ themes/topics/gho-ntd-leishmaniasis

5. Brasil. Manual de Vigilância da Leishmaniose Tegumentar Americana. Brasil: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância Epidemiológica; 2007. 182 p.

6. Sabido FDAJ, Pinto MR. A case of kala-azar possibly contracted in Angola. Jornal da Sociedade das Ciencias Medicas de Lisboa. 1963;127:796-826.

7. Jimenez M, Puente S, Gutierrez-Solar B, Martinez P, Alvar J. Visceral leishmaniasis in Angola due to Leishmania (Leishmania) infantum. The American journal of tropical medicine and hygiene. 1994;50(6):687-92. doi: https://doi.org/10.4269/ajtmh.1994.50.687

8. Vilhena H, Granada S, Oliveira AC, Schallig HD, Nachum-Biala Y, Cardoso L, et al. Serological and molecular survey of Leishmania infection in dogs from Luanda, Angola. Parasites & vectors. 2014;7(1):1-4.

      9. Corte S, Pereira A, Vasconcelos J, Pixão JP, Quivinja J, Afonso JM, Cristovão JM, Campino L. PO 8505 Leishmaniose in Angola  – an emerging disease? BMJGH. 2019 ; 4 (Suppl3): A1–A68. doi:https://dx.doi.org /10.1136/bmjgh-2019-EDC.125

10. Organización Mundial de la Salud. Control de las leishmaniasis. Ginebra, Suiza: Organización Mundial de la Salud; 2012. 200 p.

11. Sunyoto T. Access to leishmaniasis care in Africa: Universitat de Barcelona; 2019.

12. Bennett JED. Raphael. BLASER, Martin J. Mandell, douglas, and bennett: manual de doenças infecciosas. Rio de Janeiro: Elsevier; 2019.

13. Montalvo AM, Fraga J, Monzote L, García M, Fonseca L. Diagnóstico de la leishmaniasis: de la observación microscópica del parásito a la detección del ADN. Revista Cubana de Medicina Tropical. 2012;64(2):108-31. https://doi.org/10.5858/arpa.2013-0098-oa

14. Shirian S, Oryan A, Hatam G-R, Panahi S, Daneshbod Y. Comparison of conventional, molecular, and immunohistochemical methods in diagnosis of typical and atypical cutaneous leishmaniasis. Archives of Pathology and Laboratory Medicine. 2014;138(2):235-40.

15. Gomes CM, de Paula NA, De Morais OO, Soares KA, Roselino AM, Sampaio RNR. Complementary exams in the diagnosis of American tegumentary leishmaniasis. Anais brasileiros de dermatologia. 2014;89:701-9.  doi: https://doi.org/10.1590%2Fabd1806-4841.20142389

16. Torres-Guerrero E, Arenas R. Leishmaniasis. Alternativas terapéuticas actuales. Dermatol Rev Mex. 2018;62(5):400-9.

17. Krolewiecki AJ, Romero HD, Cajal SP, Abraham D, Mimori T, Matsumoto T, et al. A randomized clinical trial comparing oral azithromycin and meglumine antimoniate for the treatment of American cutaneous leishmaniasis caused by Leishmania (Viannia) braziliensis. The American journal of tropical medicine and hygiene. 2007;77(4):640-6.

 

RACSAúde. Angolan Journal of Health Sciences. www.racsaude.com